O rapper brasileiro Emicida, um dos artistas mais criativos e perceptivos nos últimos tempos, cria drama não somente nas suas letras mas também na dinâmica da sua voz. Na música “Cristântemo,” gravada em 2013, ele fala sombriamente que “a vida é só um detalhe”. A complexidade fascinante e rica de verdade está no contexto. É com este espírito que reflito sobre os protestos atuais quanto à Copa do Mundo no Brasil.
No Brasil o futebol é tudo. O jogo é “só um detalhe”. O futebol é uma aglomeração de realidades e um labirinto de sonhos. Ele é o idioma que oferece as metáforas de família, felicidade, música, política, os sucessos pessoais, mas também dos sucessos nacionais e das violências individuais, dos desesperos de classe. O organizador carismático e poeta “marginal”, Alessandro Buzo, escreve contos de futebol como protagonista do cotidiano de trens suburbanos da metrópole de São Paulo. Patrícia Melo, a conceituada autora brasileira de favela verité, refere-se à utilidade do futebol mesmo em situações de estranhamento. Reizinho, o anti-herói adolescente do livro Inferno, cogita, “Pena que não houvesse um jogo. O melhor seria assistir ao jogo, em silêncio. Não conversar. Torcer. As conversas não serviam para nada”. O futebol é o símbolo mestre até de doenças malévolas. Num artigo recente da blogger Cynara Menezes sobre o escrito uruguaio Eduardo Galeano, muito querido por intelectuais brasileiros, relata-se uma estória contada por Galeano sobre sua luta contra o câncer. Galeano descreve delírios futebolísticos com imagens dele chutando a bola repetidamente, com a bola sempre voltando à mesma posição inicial, como se ela estivesse morrendo de risada da minha postura estudada, pensando, que eu poderia controlá-la”. Mesmo os brasileiros que não têm time e não acompanham o esporte, estão ligados ao futebol definitivamente através de relações cotidianas, amigos, família, amantes, colegas profissionais, vizinhos e celebridades.
Como a maioria de norte-americanos não-hispânicos, não cresci com o futebol por perto. Comecei a entender o poder do futebol somente em 1994, com vinte cinco anos de idade, assistindo a Copa com amigos latinos no estado do Texas e, especialmente, durante a final entre Brasil e Itália. Eu estava num boteco na fronteira entre México e Guatemala. Depois morei anos em Sampa, virei corintiano e assisti no Brasil os jogos das Copas de 1998, 2002 e 2010. Com as ruas decoradas e pintadas, a Copa do Mundo sempre foi uma demonstração pública de orgulho sobre uma das únicas coisas que os brasileiros têm dominado no mundo moderno. Um reconhecimento de algo positivo em face de tantas dificuldades históricas, tanto preconceito e bruta ignorância sobre esse país gigantesco. (Finalmente, as pessoas estão percebendo que a língua portuguesa não é o espanhol, e que Buenos Aires não é a capital do Brasil).
E agora, cadê a paixão? Segundo o site gawker.com (e muitos brasileiros conferem em conversas informais), há ódio até contra o hino da Copa. Porque o Brasil está aparentemente dividido entre aqueles que são fãs alienados, patriotas, e aqueles que veem a Copa como a ápice de corrupção, um absurdo insuportável que deve ser interrompido a qualquer custo? Será que a Copa é uma “dança com o diabo” [FIFA] ou é uma campanha manipuladora da direita, cujo objetivo é a posse do Palácio da Alvorada nas eleições do fim deste ano? Ou nenhuma das opções? Ou ambas? Os manifestantes dos protestos estão unidos? Quem ganha com esses protestos e quem ganha com os mega eventos, como a Copa, mas também as Olimpíadas de 2016, no Rio? A história tem algo a nos ensinar?
História
Para o bem ou para o mal, essa relação íntima entre o futebol e o Brasil tem estado aqui por quase um século. Sua história bem documentada transita da época em que o jogo era um past-time, elite e amador dos Britânicos (fin de siecle contando com as explorações econômicas em São Paulo e Rio, particularmente com relação a ferrovia, têxtil, tabaco, transporte urbano e eletricidade), período dos times das fábricas e da popularização colateral do esporte, até a época da profissionalização no fim dos anos 1920 e as primeiras presenças na Copa, que começou em 1930 e seguiu até a realização do objetivo fundamental, ser campeão mundial, pela primeira vez em 1958. Em retrospectiva, a história do futebol brasileiro é fundamentalmente entrelaçada com o desenvolvimento da nação, as relações raciais, a questão de classe, os papéis de gênero, o machismo, a homofonia, a urbanização e a globalização. São precisamente essas áreas da vida cotidiana que se tornaram alvos dos protestos “contra a Copa”.
Todo brasileiro sabe o que aconteceu em 1950, a última e única vez que esse megaevento foi realizado na terra cabocla. A final da Copa de 1950 supostamente representa uma alegoria nacional, que destaca uma seleção, e por extensão um país, imaturo e não preparado para o horário nobre. O Brasil tremeu no segundo tempo e deixou os campeões da primeira Copa de 1930, o Uruguai, virar o jogo e ganhar 2-1 na frente de uma plateia recorde, chocada dentro de um estádio recém-construído, chamado Maracanã. Pensaria-se que depois de avanços significativos no que se refere aos índices de desigualdade, somados a cinco troféus da Copa, os brasileiros estariam abraçando a oportunidade de assegurar seu lugar merecido entre os líderes da nova ordem mundial. Não estamos testemunhando a segunda parte da cadeia da representação simbólica de um novo elenco? Em 2010, a África do Sul, o “S” da sigla BRICS sediou a Copa. Agora é o “B”, de Brasil.[1]
As Questões Principais
Teoricamente, o tema em comum dos protestos é o uso do capital público para não interesses privados, na sua maioria internacionais, comandados pela FIFA. Em 2007, quando presidente Lula e um comitê fez o lobby que assegurou o voto para sediar a Copa, o presidente explicitamente prometeu que o projeto seria financiado por investimentos privados, que nada viria do orçamento público. Em maio deste ano, entretanto, foi divulgado que 83% do orçamento utilizado na Copa é composto de dinheiro público. É claro que este tipo de desvio tem acontecido em escalas gigantescas em todas as gestões na história brasileira de política moderna. Porém, considerando-se as ideologias putativas de igualdade social da plataforma do PT, que está no poder em Brasília desde 2003, o crescimento econômico significativo durante o mesmo período, o legado carismático de Lula e a visibilidade global da Copa, este tipo de traição é inaceitável. Por sua vez, a Presidenta Dilma tem sido direta ao falar sobre as relações com a FIFA. Numa palestra recente, citou o blog do jornalista Mário Magalhães, que declara inequivocamente que se a FIFA fosse um modelo à administração estatal, o desespero atual sobre a saúde, racismo e educação seria muito pior, se não se tornasse criminal.
O ponto da partida das mobilizações de junho de 2013 emergiu do que parecia uma discussão modesta sobre os preços de ônibus. O movimento “Passe Livre” pediu uma coisa simples: que se mantivesse a tarifa de ônibus a R$3,00. Enquanto o prefeito Fernando Haddad hesitava sobre o que fazer (ele finalmente cedeu às demandas e o grupo “passe livre” se desfez), vários segmentos da população perceberam uma oportunidade para articular o momento a outras questões.
Como a maioria dos aspetos do cotidiano brasileiro, a saúde, a educação e o transporte operam num sistema de duas faces. Existem setores públicos e privados atuando no mesmo setor. De um lado temos um sistema de saúde muito burocrático, subsidiado pelo estado, público e uma matriz desorganizada de transporte público. Por outro lado, existe uma gama de corporações com profissionais e planos particulares acompanhado pelo fetiche do carro e da construção de avenidas e auto-estradas. No caso de educação, a situação é diferente porque a educação fundamental privada, um custo fora do alcance da grande maioria do povo, tende a resultar numa educação universitária gratuita, em instituições públicas. As massas, por sua vez, lutam para aprender navegando com recursos ultrapassados, orçamentos reduzidos em relação à tecnologia e professores mal remunerados, pagado caro por uma faculdade com qualidade suspeita.
Nada disso é justo nem novo. Em geral, essas realidades são legados de instituições históricas como a escravidão, as gestões coloniais e suas leis de cidadania e propriedade, as ideologias de eugenia formadoras na história do Brasil como uma nação, o nacionalismo cultural (que coincidiu com a popularização de futebol, samba e carnaval) e as políticas de reformulação estrutural, durante a ditadura militar (1964-1985). Uma história longa do poder da elite. Este breve resumo ajuda a explicar porque o Brasil vem aparecendo no topo (ou abaixo, conforme sua perspectiva) da lista do países mais desiguais, os piores dos piores em relação à distribuição de renda. Porém, vale ressaltar que desde 2000 o sétimo colocado na lista da PIB (que ultrapassou a Grã-Bretanha, em 2012) tem melhorado, resultando naquilo que se chama de surgimento da classe C, ou seja, milhões de brasileiros que saem da categoria de pobreza. Há ainda avanços rumo a maior igualdade racial e, por isso, observamos certa fragmentação do sistema bifurcado da vida socioeconômica, considerando que as questões de raça e classe são entrelaçadas. Quanto à educação, diferente do que muitos manifestantes clamam, existe um investimento público e parcerias publico-privadas que têm sido novos e efetivos, por exemplo, FIES (Fundo de Financiamento Estudantil).
Há um outro fator neste milieu, a violência. Não aquela violência de hooligans, que os gringos não se cansam de debater. Novamente, o jogo é só um detalhe. A violência à qual me refiro vem da história recente de terror policial nas cidades de São Paulo, durante o mandato de Kassab (2006-2012), apoiado pelo governador autoritário Geraldo Alckmin (2001-2006; 2011-presente) e, no Rio de Janeiro, pela presença das UPPs (“Unidades de Polícia Pacificadora). Devido à paranoia sobre a segurança, um dos mercados mais sensíveis e lucrativos na cena global atualmente, pode-se observar mais investimentos na “limpeza” das áreas de turismo e dos estádios. A violência não é simplesmente física, demonstrada pelos centenas de assassinados cometidos pela polícia, mas também estrutural e econômica. A grande maioria dos 25 bilhões de reais gastos na Copa tem sido afunilado na construção de estádios novos, reformas de estádios já existentes e a segurança. Um resultado gritante é o deslocamento forçado de milhares de famílias, especialmente no Rio e em São Paulo. A violência econômica se manifesta na inflação repentina dos imóveis que tem resultado em remoção até de famílias de classe média. O jornalista Mário Magalhães faz um resumo da situação: “Em 2007, firmou-se um pacto entre governo e nação: enfim, vamos realizar a Copa dos sonhos, mas sem sacrificar quem já é muito sacrificado. O pacto foi rompido.”
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Protestos Sérios e Oportunismo de Mal Gosto
Desde Junho de 2013 observa-se uma oposição complexa e, às vezes, esquisita contra a Copa. Paralelamente, percebe-se uma ligação curiosa e míope entre a Copa e a política estatal. Se alguém fosse somente ler a imprensa internacional, incluindo as redes sociais de twitter, blogs e facebook, pensaria que a Copa está arruinando o Brasil por introduzir a corrupção político-econômica e a violência policial em um território idílico; ou que o cenário atual consta como uma versão Sul-Americana da “Primavera Árabe”; ou ainda que é uma reprise da ditadura militar brasileira dos anos 1960 e 70.[2] Não há dúvida que a imprensa gringa esteja seguindo o exemplo de vários brasileiros, que apenas reforçam a perspectiva estrangeira que o Brasil não está preparado para associar-se aos grandes. A conta de Tumblr chamada “only in Brazil“, por exemplo, revela uma visão “crítica” de brasileiros que compartilham experiências sobre a burocracia absurda no seu lamentável país. Eles categoricamente atribuem suas frustações à natureza retrógada do Brasil. Eu tenho observado aqui no Brasil e nos Estados Unidos que as pessoas que levantam essa bandeira [“only in Brazil” é o mais recente de vários, veja-se “Cansei” e ‘Atrasado”], são quase sempre beneficiários dos privilégios do Estado, seja em forma da estrutura de impostos seja a estrutura educacional que frequentemente permite que a elite possa estudar no estrangeiro e receba a melhor educação nas universidades públicas brasileiras. Vale ressaltar que este grupo nunca se mexeu para criticar as injustiças quanto aos índices de desemprego, nem o desvio de investimento da educação pública durante o regime neoliberal do Fernando Henrique Cardoso, por exemplo.
As complexidades dos protestos também podem ser atribuídas à estrutura fragmentada de administração. Por exemplo, os sistemas de transporte em São Paulo são divididos entre o alcance de governos da cidade e do estado e, por isso, as decisões de gerenciamento muitas vezes são partidárias. Os manifestantes dos protestos raramente reconhecem isso, que infelizmente leva a uma mentalidade de que todas as agências estatais são iguais e todas são corruptas. Ricardo Melo, jornalista da Folha de São Paulo, faz uma observação parecida quando ele escreve: “num país com as enormes carências no Brasil, sempre quando o Tesouro deixa de gastar com o básico da sobrevivência, há uma sensação de desperdício…X-tudo [é perigoso porque] lança trabalhadores contra trabalhadores.”
Uma outra fonte que gera confusão é o oportunismo. Por exemplo, o artilheiro lendário e comentarista atual da Rede Globo, Ronaldo “O Fenômeno”, recentemente expressou publicamente sua “vergonha” no gerenciamento brasileiro da Copa. No caso do Ronaldo, essa postura é particularmente esquisita considerando que ele fazia parte do comitê desde o início da negociação com a FIFA, bem como da equipe de avaliação dos atrasos de construção. De fato, a Copa tem dado lucros astronômicos ao artilheiro-mercenário, cujo único rival neste campo seria o atual atacante-estrela Neymar. Muito mais sintonizado na máquina esporte-política, o oportunismo do Ronaldo reflete suas aspirações a ser o próximo Ministro de Esportes, se seu amigo Aécio Neves for eleito Presidente da República, no fim deste ano.
Numa escala mais coletiva, é óbvio para qualquer sindicato que agora é o momento de realizar uma greve. Nas últimas duas semanas funcionários de ônibus, metrô, rede pública das escolas, bibliotecas, e mesmo da polícia entraram em greve em São Paulo e Rio. O ponto aqui não é que tais greves são ilegítimas em termos de conteúdo, mas que é fácil e, por alguns, confortável interpretar esse descontento como algo ligado ideologicamente à Copa. Nesses casos, é timing. Porque não entrar em greve agora, quando o mundo todo está olhando?
Vamos Fazer Barulho [Produtivo]
Quando o Brasil me parece uma quebra-cabeça impossível de montar, eu frequentemente encontro uma verdade e inspiração na periferia das grandes cidades, sede de um grupo cada vez mais unido de contadores de estórias, artistas e heróis populares. Na minha atual estadia em São Paulo tenho me familiarizado com saraus, um movimento popular de poetas “marginais”, que organizam eventos de poesia, música, slam e spoken word na expansiva periferia paulistana. Em conclusão, cito o grande Tubarão Dulixo, uma figura que ao lado do Alessandro Buzo (citado acima) organiza o Sarau Suburbano Convicto, um dos mais populares na cidade. Tubarão gosta de explicar o sarau como uma maneira de “quebrar os muros e construir pontes”. Pensei nesse lema enquanto lia as referências repetidas de “baderna”, nos jornais. Esta a palavra que serve atualmente para encapsular a bagunça, vandalismo e desordem, a suposta transgressão do debate democrático ao caos. Talvez, haja algumas qualidades redentoras na baderna. Historicamente, o termo se refere à bailarina italiana Maria Baderna, estabelecida no Rio em 1849. Ela misturou o lundum, um gênero de música e dança afro-brasileiro, com o ballet europeu. Essa largueza da arte e da crítica social capturou o espírito da juventude curiosa, que esticava depois das performances cantando seu nome “Baderna”. Talvez possamos recuperar o sentido original de baderna como um chamado criativo à reflexão sobre o que conta como política no nível global. A baderna real não é oposição nihilista, ela é coletiva, gera crítica.
Fazer barulho produtivo e perceber que o jogo é só um detalhe exige um certo trabalho. . A Copa do Mundo está chegando (além das Olimpíadas em dois anos) e o que acontecer em campo terá um significado minúsculo para o Brasil e para sua imagem internacional, nos anos que virão. Os protestos no Brasil tem base sólida mas a articulação com o que eles significam está longe de ser sólida ou genuína. Brasileiros e estrangeiros precisam de bastante atenção para ver a complexidade da relação o Brasil e o futebol. Essa não é uma outra Primavera Árabe. O estado brasileiro desviou fundos públicos e facilitou uam especulação que não beneficiará numa maneira recíprico as massas não educadas e desempregadas, sofrendo pela pobreza de saúde e migalhas de infra-estrutura. Mas esse não é um momento de Occupy Wall Street. Não há ditadura no Brasil. Não há censura no Brasil. De fato, a grande mídia sistematicamente maniula as informações contra o Partido dos Trabalhadores brasileiro. O Brasil não é a Venezuela de Chavez, nem Cuba de Fidel Castro, tampouco a Colômbia de Uribe, para tomar um exemplo contrário. Simplificações podem dar bom Ibope mas é temerário para se buscar a verdade. Simplificação é semelhante ao Goooooool! Ao qual nós lembramos, recorrentemente, como razão da vitória ou da derrota. E quanto ao resto da cena?
Nota: Eu gostaria de agradecer meus colegas Vítor Nuzzi e José Zambrano Caliendo Jr. pela ajuda com algumas das fontes jornalísticas e, também, Gabriel Feltran pela revisão da minha tradução em português. Agradeço a Lara Dotson-Renta pela oportunidade de escrever sobre esse assunto tão importante atualmente. É claro que eu me responsabilizo por todas as interpretações e os argumentos expressados no texto.
Featured image credit: Paulo Ito, https://www.flickr.com/photos/pauloito/13998946669
Footnotes
- Veja este artigo para compara África do Sul e Brasil e essa comparação que inclui a Alemanha (sede da Copa em 2006) no jornal O Globo. Para maiores informações sobre a Copa de 2010, veja este livro.
- Veja esta entrevista recente com dois jornalistas estrangeiros (um italiano e outro norte-americano), que moram no Brasil muitos anos. Eles mantém a posição que a Copa desviou o Brasil a um caminho novo e perigoso. Apesar do tom diplomático, a falta de reconhecimento histórico das mudanças socioeconômicas e cívicas por parte deles demonstra meu argumento.