Abstract
Como mulheres que têm sua trajetória marcada por uma gravidez na adolescência entrelaçam militância e maternidade, no momento que saem ao público para reivindicar demandas do privado? Para este artigo, foram ouvidas dez jovens mães do Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB) de forma a compreender como o ser mãe, ser mulher e ser militante se cruzam. Nosso objetivo é apresentar histórias de vida e experiências cotidianas de mulheres que foram mães na adolescência. Buscamos analisar como estas jovens pensam a gestação perante um movimento marcado pela itinerância, suas relações familiares e militantes, a experiência, as representações constituintes de uma relação indivíduo-movimento social que se destacam neste processo, suas expectativas em torno de suas participações e as mudanças sócio-afetivas produzidas pela gestação. Para tanto, nos valemos da história de vida como técnica. Antes, traçamos o caminho percorrido pelo MSTB, sua luta, demandas e bandeiras e por fim analisamos as relações familiares constituídas após a maternidade.
Las mujeres no solamente habrán de aportar relevante apoyo (para la construcción social), sino que han de tener un papel protagonista. (Asunción Miura, 2008.)
Qual a influência de gravidez(es) que resulta(m) da maternidade na adolescência, na trajetória juvenil? Seria apenas sobreposição de vulnerabilidades? Ou motor para as mulheres que, historicamente, ocuparam o espaço atuarem no âmbito público? Suas atuações só eram possíveis quando reivindicam questões do doméstico, do mundo privado, como a moradia? Suas atuações reproduziriam antigos padrões denominados femininos ou haveriam possibilidades de uma mudanças? O meio urbano – como espaço heterogêneo de valores, crenças e normas – aumentaria a possibilidade de transformações femininas, pois permitiria uma prática menos conservadora? Como se daria o entrelace entre a maternidade e atuação pública através da participação em um movimento social? As interfaces entre público e privado estariam definidas neste lócus e nesta práxis?
A delimitação recaiu sobre movimento social denominado de sem tetos da Bahia, circunscrevendo o município de Salvador, Bahia, Brasil, enveredando por caminhos qualitativos e valendo-se de “métodos qualitativos que supõem uma população de objetos de observação comparável entre si e os métodos qualitativos enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser” (HAGUETTE, 1987, p.63). Como instrumentos de coleta, as histórias de vida foram a opção, precedida por perguntas exploratórias e possibilitando recriar as próprias experiências e construções identitárias.
Para a investigação, as jovens-mães foram convidadas a relatar suas histórias de vida, marcadas pela(s) gestação(ões) na adolescência. Para complementar dados ainda foi acrescido um questionário socioeconômico com o objetivo de ser aplicado como forma de melhor caracterizar as participantes e fazer uma abordagem prévia do contexto e da conjuntura. Foram entrevistadas jovens mães, entre 18 e 25 anos, que estiveram gestantes entre os 10 e 19 anos. Essa distância entre o evento da gravidez e a entrevista permite uma análise do vivido, de maneira a perceber a evolução da pessoa no tempo, a medida que essa busca sentido à sua própria vida e faz uma reflexão sobre si mesma e sobre sua experiência individual e coletiva (aqui no que se refere à família ou ao coletivo do Movimento).
Os dados obtidos foram analisados e cruzados entre si, favorecendo a elaboração de características comuns. Dada a mobilidade, característica própria dos participantes do MSTB, houve certa dificuldade em localizar estas jovens e de fazer um acompanhamento prolongado, bem como “abrir” espaços de inserção, confidencialidade e reconhecimento da própria pesquisa proposta. “A memória oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crônica do cotidiano” (BOSI, 2003, p. 15 e 53). O tempo é um importante elemento quanto se opta pela história de vida. “A memória é, sim, um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo”. Não seria demais recordar que toda memória parte do presente (tempo presente), de preocupações e visões atuais, salientando que os eventos vividos passam por ressignificações (tempo narrado).
Questões de gênero
As mulheres sem teto traçaram uma linha tênue entre a casa e a rua. Descolaram de demandas do âmbito doméstico para reivindicar espaços públicos. Nesta investigação é preciso acrescentar outro tópico que é a maternidade e a juventude, acarretando olhares distintos de uma mera descrição do processo de “feminização da pobreza” e de vulnerabilidades sobrepostas. O que nos leva a questionar se, ao longo do tempo, a atuação feminina sempre foi alicerçada no privado para se chegar ao público.
Reforçando este argumento, Heleieth Saffioti (2004, p. 45) ressalta que gênero seria a construção social do masculino e do feminino, indicando ainda que as relações são elaboradas e vividas no cotidiano e com base na categoria relacional. Não se trata de ignorar as diferenças biológicas entre homens e mulheres, contudo a percepção de que essas diferenças não podem legitimar as disparidades que assistimos ao longo dos séculos. E pensando no cotidiano das mães jovens do MSTB em Salvador, essas diferenças confirmam as tradições dos papéis e dos perfis: iniciação sexual, gravidez na adolescência (riscos e inseguranças), vulnerabilidades quando se analisam várias categorias, projeto de vida sonhado X projeto de vida acontecido e tomadas de decisão.
Pensando e refletindo sobre a contribuição da historiografia sobre relações de gênero, também vale a pena recuperar a assertiva proposta pela historiadora francesa: “Agir no espaço público não é fácil para as mulheres, dedicadas ao domínio privado, criticadas logo que se mostram ou falam mais alto”. Essa subordinação da mulher aos espaços privados tornou a sua atuação pública desencorajada ou, quando existência, secundarizada. “A dissimetria do vocabulário ilustra esses desafios; homem público é uma honra; mulher pública é uma vergonha, mulher da rua, do trottoir, do bordel” (PERROT, 2007, p. 146 e 136). Retratos de uma subjugação que pode ser sutil ou escancarada, mas que se incorporam no cotidiano. “Ser mulher na política, ou ainda ser uma “mulher política” parece a antítese da feminilidade, a negação da sedução, ou ao contrário, parece dever tudo a ela” (PERROT, 2007, p. 153).
Entre a História e a Sociologia várias são as abordagens da historiografia contemporânea que podem contribuir nessa construção. Para reforçar essa assertiva, e detendo-se ao contexto brasileiro, Saffioti (2004, p. 46) afirma que ainda há distinções entre mulheres femininas e mulheres feministas, “como se estas qualidades fossem mutuamente exclusivas”.
No entanto, como considera Claudia Barbosa (2008), a apropriação do poder por parte das mulheres permite que se modifiquem as estruturas que modelam as discriminações de gênero. Cada vez mais a participação e a integração feminina se fazem presentes e confirmam a urgência de uma agenda específica.
A participação feminina no âmbito público origina novas percepções dos papéis que cumprem e que lhe permite maior autonomia com respeito a suas famílias. Este âmbito cultural se expressa na postergação da primeira união ou do nascimento do primeiro filho, em uma fecundidade mais baixa, nos conflitos que surgem nos casais de dupla carreira e na necessidade de equilibrar o trabalho doméstico e o trabalho remunerado (ARRIGADA, 2001, p. 29).
O acesso e a atuação das mulheres no mercado de trabalho, também, estão distantes de serem equiparados à situação masculina (CAVALCANTI, 2005), agravando as distinções não só econômicas, mas sociais. Se para além da posição de gênero, classe e etnia forem levadas em conta, as diferenças são ainda mais alarmantes.
Em outra perspectiva, pode se avaliar que a situação feminina no mercado de trabalho possui múltiplas causas,
[...] mais do que o homem, a mulher tem sua participação no trabalho remunerado possibilitado ou constrangida, em maior ou menor escala, por várias delas: idade, estado civil, escolaridade, número de filhos, ciclo de vida familiar, localização rural ou urbana (…) A participação dos indivíduos do sexo feminino na produção social não se define apenas pelas condições do mercado, pela estrutura do emprego ou, mais genericamente, pelo nível de desenvolvimento da sociedade, mas também por sua posição na família e pela classe social à qual pertence o grupo doméstico. (BRUSCHINI, 1985, p. 3).
Tal assertiva aponta para uma análise na contramão da escolarização, uma vez que as mulheres tendem a ter mais anos de escolaridade do que os homens, demonstrando que essa questão merece uma ótica mais cuidadosa. Isso agravaria o que os estudos da área vêm caracterizando como “feminização da pobreza” (SEN, 2000), sentida especialmente nos domicílios chefiados por mulheres, onde estas acumulam funções que vão desde o cuidado com os filhos, afazeres domésticos e atividade laboral remunerada, reforçando a prática de múltiplas jornadas exercidas na vida cotidiana.
De certo, o fenômeno de ‘feminização da pobreza’ já ganha espaços sem fronteiras ao ser confirmado não só nas estatísticas das principais agências internacionais, como também no cotidiano, nas imagens de países com desenvolvimento humano baixo. Posto isso, pode-se afirmar que, no conjunto dos indivíduos que vivem com menos de um dólar por dia, a maioria é constituída de mulheres. Mas é fundamental que se frise sempre a questão da trajetória feminina da escola ao mundo do trabalho, pois é através deste mecanismo que se proporciona a autonomia necessária, sobretudo financeira, para que a condição de mulher não seja mais motivo de vitimização, submissão ou invisibilidade (CAVALCANTI, 2005, p. 94).
Ao abordarmos a atuação feminina no mercado de trabalho, a dupla jornada é uma constante e apresenta-se de maneira naturalizada. Além do trabalho remunerado, elas se deparam com afazeres e cuidados no âmbito doméstico. No que se refere especificamente às militantes de movimentos sociais, podemos falar em uma tripla jornada, somada às atividades já referidas, encontrando-se a militância como mais uma atividade de suas práticas e de suas experiências diárias.
A maioria dessas mulheres, para poder participar dos movimentos sociais, desenvolveu táticas de serviço doméstico que permitem realizar as tarefas de casa e o cuidado com os filhos num tempo bem menor do que o costumeiro e que alteram a relação que mantinham com a domesticidade que, anteriormente, as ocupavam e absorviam durante todo o dia (CHAUÍ, 1993, p. 147).
Reforçaríamos que o tempo pode ter sido diminuído, mas não eximiu as mulheres dessas múltiplas jornadas. Somada à condição de gênero estão as construções geracionais, que tornam a população objeto do nosso estudo ainda mais vulnerabilizada. Ao mesmo tempo, há uma exaltação da cultura juvenil pelo que simboliza e pelas possibilidades que apresenta.
Guerreiras Sem Teto
A fundação do Movimento dos Sem Teto de Salvador é resultado de uma ocupação no bairro de Mussurunga. A primeira ocupação acontece na Estrada Velha do Aeroporto, chamado “Dois de Julho”[1], seguia os modelos de acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No mesmo mês, a Superintendência de Controle e Uso do Solo (SUCOM) articula uma tentativa frustrada de reintegração de posse. Sem êxito dado à inexistência de um mandato judicial. A segunda tentativa é efetivada e desloca 700 cadastrados. A reintegração leva o movimento a ocupar as páginas dos jornais baianos. Daí em diante a mobilização popular irá se tornar cada vez maior.
Em paralelo ao Movimento que dava seus primeiros passos, acontecia na Cidade do Salvador, um movimento de caráter estudantil, intitulado a Revolta do Buzu[2]. Durante vários dias, estudantes tomaram as ruas da capital baiana para reivindicar o aumento nas passagens dos ônibus urbanos. Desde o início, os dois movimentos estabelecerem diálogos e as reivindicações assinalavam para uma “cidade” que marginalizava, excluia e resistia ao crescimento e à expansão desordenada e sem justiça social. Outros movimentos de luta por moradia desencadeavam pelo país, a exemplo de São Paulo, Recife e Belém.
Outro elemento que desperta grande atenção na composição do Movimento aqui estudado é a grande concentração de mulheres, estas somam quase 70% dos integrantes do MSTB. Buscando uma tendência em diversos movimentos populares do Brasil, “é possível observar que, na maioria dos movimentos populares e sociais desenvolvido nos últimos anos no Brasil, a participação feminina é majoritária, ainda que as lideranças de muitos desses movimentos sejam exclusivamente masculinas” (CHAUI, 1993, p. 146).
Herdeira de um legado de pobreza, mas também de ousadia e esperança, pela sua condição de gênero, raça e classe, a presença feminina, em sua grande maioria negra, mostra imensa expressão nas ocupações, núcleos e nas manifestações de rua promovidas pelo Movimento. A saída do âmbito doméstico e a inserção na política, seja nos cargos de direção, seja participando das ocupações, traz novas possibilidades para as mulheres do MSTB, que passam a se familiarizar com o público das ruas e dos espaços de poder, ao tempo em que podem vir a questionar o que acontece entre quatro paredes, a exemplo das divisões do trabalho doméstico com marido e filhos. Por tudo isso, constituem fortes referências para a construção das COMUNIDADES DE BEM VIVER, baseadas em relações de gênero igualitárias (MSTB; MSTS, 2005).
Em 2005 foi inaugurado um coletivo de mulheres, intitulado Guerreiras Sem Teto. A participação em um movimento social, dotadas de certo grau de poder, à medida que já não ocupam apenas as esferas domésticas, mas passam a ter uma atuação no âmbito público. Desde os primórdios do movimento, elas ocupam cargos de coordenação e estão presentes nas caminhadas, assembléias e outras atividades realizadas (CLOUX, 2008). Foi resultado da percepção das igualdades enfrentadas pelas mulheres nas relações cotidianas.
Em 2003, dentre inúmeras ocupações, manifestações pela moradia digna, pressões ao Poder Público, interesse de todo coletivo do movimento, sentamos para discutir os interesses mais comuns às mulheres, as nossas insatisfações, as violências de todo tipo sofridas, violências tipicamente sofridas por mulheres.
No ano de 2004, já nos reuníamos para pensar de que modo agiríamos para transformarmos aquela situação. Como poderíamos continuar lutando pela nossa moradia, pela segurança do teto e ainda assim continuarmos inseguras, privadas de nossa liberdade, do respeito de nossos companheiros, da capacidade de administrar a nossa própria casa, de viver dignamente em nossa comunidade? Começamos a fazer várias reuniões nas ocupações e cada vez mais aumentava o número de mulheres com as quais a luta das mulheres do Movimento dos Sem Teto se fortalecia. Discutimos essas questões no período do I Congresso do Movimento dos Sem Teto da Bahia, em janeiro de 2005.
Mas, foi em 8 de março de 2005, que nos lançamos como as Guerreiras Sem Teto. Fizemos nossa I Marcha. Neste dia, pela primeira vez nós, mulheres negras, dos setores populares, sem teto, organizadas no interior da LUTA POR MORADIA, fomos às ruas para denunciar e combater o racismo e o machismo existente dentro do MSTB e na nossa sociedade (MSTB; MSTS, 2009d)
Nas palavras destas mulheres, o coletivo surge com forma de oposição e transformação do capitalismo que teria em sua matriz o machismo que pela divisão sexual do trabalho, utiliza a mão de obra feminina para a garantia de lucros. Acreditam que com sua ação podem contribuir para emancipação feminina e do grupo em si.
Construir uma rede que aposte nas lutas emancipatórias das mulheres, para que todas juntas saiamos da invisibilidade e da opressão, é o que buscamos em nosso trabalho. QUEREMOS IGUALDADE DE DIREITO E DE OPORTUNIDADES!!!
O trabalho das mulheres GUERREIRAS SEM TETO visa contribuir para o fortalecimento da autonomia e da capacidade de intervenção política das mulheres e, sobretudo, fortalecer a subjetividade feminina a partir do resgate da resistência feminina, negra, indígena e popular do povo brasileiro (MSTB/MSTS, 2009d).
Essas mulheres entendem que, em suas histórias de vida, não estão desvinculados fatores como classe e etnia. A multireferencialidade e a sobreposição de categorias estão em seus cotidianos e nas representações de suas lutas. Esses se somam à categoria gênero, que por longos períodos relegou a mulher a condição do privado, sendo tarefa masculina ocupar os espaços públicos.
Mas, nós, Guerreiras Sem Teto, que somos descendentes daquelas que foram arrancadas de suas famílias, sociedades, culturas, modos de viver na África – mulheres que criaram um modo de vida neste continente chamado América -, que nos inspiramos umas nas outras, que nos ‘seguramos’ umas nas outras, das mulheres da Resistência não herdamos apenas as mazelas da ‘diáspora’, mas herdamos sobretudo a coragem, a combatividade, a capacidade de organizar a luta pela libertação do povo negro. Hoje damos continuidade às lutas iniciadas pelas nossas ancestrais. E é inspiradas na luta de muitas guerreiras que vieram antes de nós que avançamos para a organização do nosso trabalho dentro das ocupações, sem nos deixarmos abater com as idas e vindas, sem nos deixarmos abater pela falta de perspectiva, sem nos deixarmos abater pelos problemas próprios de nosso difícil dia a dia. Hoje, com a força de mais companheiras que levantam a bandeira da libertação das mulheres e do combate à todo tipo de discriminação e opressão de gênero, avançamos para a construção da rede de solidariedade entre nós, companheiras de/na luta, para a construção dos núcleos de base, para a construção do Coletivo das Guerreiras Sem Teto e gênero, para a construção da nossa liberdade!!! (MSTB; MSTS, 2009d)
Reivindicam políticas públicas que permitam equiparação social e que cruzem categorias, pensando que as identidades não são apenas criadas pelo gênero, mas a articulação deste com classe, geração e raça.
É necessário que as políticas públicas sejam pensadas de modo articulado e que ao pensar o problema do desemprego, da moradia, do transporte, da ausência de equipamentos de serviço e da impossibilidade do acesso, os governantes “se toquem” de que não há como pensar transporte sem pensar em políticas que atendam a(o)s mais prejudicado(a)s com o descaso dessa desarticulação: as mulheres pobres, negra(o)s, a(o)s desempregada(o)s e a juventude. Por isso, nós, Guerreiras Sem Teto, PROTESTAMOS contra tudo isso que consideramos discriminação e retaliação!!! (MSTB/MSTS, 2009d).
Não queremos apenas políticas afirmativas que acabem a situação de pobreza, que, sobretudo, atinge as mulheres, mas a mudança estrutural da sociedade. As mulheres dos setores populares, em sua grande maioria negras, sempre estiveram à frente das lutas pela moradia, por equipamentos públicos e bem de consumo coletivos, enfim, lutando pelo direito de organização política e direito de acesso à cidade. Na construção do projeto político do MSTB, que são as Comunidades do Bem Viver, prevemos construir novas relações de gênero a partir da transformação da cultura de opressão à mulher em cultura de solidariedade e de respeito à vida. (MSTB/MSTS, 2009d).
Seria mesmo ingênuo afirmar que esse discurso é proferido por toda a base da militância; entretanto, merece destaque o processo de conscientização empreendido. As questões referentes a gênero compõem a agenda do Movimento e estão presentes nos cursos de formação, de maneira a possibilitar a apropriação do conceito, e perceber que a opressão, seja de classe ou de gênero, tem raízes plantadas no tempo.
Dando voz as guerreiras
As atrizes da nossa pesquisa têm histórias de vidas diferentes, um cotidiano marcado por lutas e resistência, experiências e vivências que em muito modela suas identidades individuais e coletivas. Em comum, talvez, apenas o evento da gravidez no período da adolescência e a participação no MSTB – local de moradia e atuação -, e mesmo esta pode ocorrer de maneiras distintas. Portanto, optamos em singularizá-las, dando-lhes nomes para preservar identidades e a manutenção dos compromissos de confidencialidades. Não será referendada a ocupação de onde a entrevistada é oriunda, ainda assim mapeamos as ocupações soteropolitanas e levantamos dados da coletividade e de caráter mais generalista.
A seguir, damos vozes a essas mulheres que, por meio de suas narrativas, demonstram a experiência da gravidez e parto na adolescência. Cronologicamente, há uma distância entre a nossa entrevista e o momento da gestação, o que permite a estas jovens reflexões sobre si mesmas e sobre o vivido, sobre o narrado e o experimentado no cotidiano e na contradição da vida.
Ágata, aos dezoito anos, engravidou, atualmente, tem vinte e um anos.
Alexandrita, atualmente com vinte e cinco anos, foi mãe pela primeira vez aos dezenove anos, está na trigésima oitava semana da quarta gravidez.
Ametista é mãe de três filhos. A primeira gravidez ocorreu quando ela tinha dezesseis anos.
Esmeralda tem vinte e dois anos, três filhos, o primeiro nasceu quando ela tinha dezesseis anos.
Jade aos quatorze anos teve a sua primeira gravidez. Atualmente, com dezoito anos, é mãe de duas crianças.
Lazule, mãe de um menino aos dezesseis anos, atualmente está com vinte e dois anos.
Perola, dezoito anos, sua única gravidez ocorreu aos quinze anos.
Safira, dezenove anos, a gestação ocorreu aos dezoito anos.
Topázio, vinte anos, é mãe de quatro meninas, provenientes de duas uniões, a primeira gestação aos quinze anos, e a última há poucos meses.
Turmalina teve um filho aos quatorze anos. No momento da entrevista, estava com vinte e quatro anos.
A baixa escolaridade é uma realidade entre as entrevistadas, marcando suas trajetórias e denunciando uma exposição a violências, vulnerabilidades e contradições. Também é possível perceber o abandono dos estudos, já que estavam estudando no momento da gravidez, mas não concluíram.
Estudos sobre situação educacional juvenil comumente apontam a evasão escolar, feminina e masculina, correlacionada à condição de pai/mãe na adolescência, justificada pela necessidade de cuidado e do sustento do filho, particularmente quando acontece formação de novo grupo familiar (DIAS; AQUINO, 2006, p. 1450).
Revelaram não ter profissão, com exceção de Topázio, que fez um curso de Hotelaria, e Esmeralda, a única que afirma estar empregada, atua como diarista, sem registro formal.
Ao analisar a maternidade na adolescência, é preciso sair da primeira leitura rasa e partir em busca de como o fenômeno modela a vida dessas jovens.
O contexto social no qual ocorre a maternidade/paternidade na adolescência e os principais desdobramentos na vida desses jovens advindos do nascimento da criança são questões fundamentais na análise da experiência de parentalidade juvenil. Assim, interessa saber: o que muda e o que permanece na biografia desses sujeitos? O que há de específico na condição de jovens pais/mães? (DIAS; AQUINO, 2006, p. 1448).
A maioria das mães aqui apresentadas se auto definem como jovens. Conceito esse relacionado à faixa etária e que não mudaria em função da maternidade.
Eu me acho jovem, mas minha mente já é de adulta. Não é só porque eu tenho um filho que vou ser senhora já. Não! (Jade).
Me considero jovem, por causa da minha idade. Não é porque tenho um filho que vou deixar de ser jovem (Safira).
Me considero jovem. Jovem… Eu tô ainda nos vinte anos, muita, muita coisa pra rolar ainda. Nem cheguei aos trinta. Tô com minha juventude ainda, tem que passar muita coisa ainda. Entendeu? (Ágata).
Me considero jovem. É bom, eu me considero jovem. Eu acho assim, porque eu saio, porque eu curto, não há nada que me empate. Nem meu filho não me empata (Turmalina).
Em umas partes eu sou jovem e outras não, eu não tenho mais liberdade, eu não tenho mais liberdade. Eu não saio mais, se eu tiver que sair tenho que levar essa renca toda (Ametista).
Entretanto, conceituar juventude não é tarefa simples, sendo que a revisão dos estudos da área nos aponta o mesmo. A ideia de ser jovem, como tempo de ter amigos, de diversão, confrontaria com as responsabilidades que a maternidade traz.
Ser jovem é um negocio enfocado. né [risos]. Boa pergunta. Ser jovem é ter outros jovens para sair. Ser jovem é curtir a sua vida. É muito show, muita paquera. Essa era a minha juventude, antes de engravidar. Agora é diferente, eu tenho meu filho, tenho meu esposo que não é o pai do meu filho. Tenho uma casa pra cuidar. Tenho minhas responsabilidades. Tenho sempre que tá trabalhando, fazendo bico pra sustentar meu filho. Mudou muita coisa (Lazule).
Ser jovem é como ser criança. É outra criança. Jovem sai, se diverte e adulto não, adulto trabalha, tem responsabilidade (Perola).
Se a entrada na vida adulta era ansiosamente esperada por gerações anteriores de jovens, hoje, cada dia mais, não somente se prolonga a condição juvenil no tempo, como não se verifica nenhuma pressa ou desejo de assumir a condição adulta. A vida adulta significa dependências, obrigações, amarrações, enquanto que a condição juvenil possibilita vivenciar diversificadas experiências socializantes. Atualmente, ser jovem tornou-se prestigioso, tanto que está ocorrendo um processo de juvenilização da cultura (CAMACHO, 2004, p.332).
A juventude é caracterizada pela liberdade, portanto deixar de ser jovem, representa não ser mais livre.
Ser jovem é ser livre e eu não sou mais. Antes de ser mãe eu era jovem, e como eu era (Ametista).
Antes de ter filho eu saia muito, curtia muito. (…) Depois que tive filho eu fui amadurecendo mais e mais, hoje eu não me considero jovem mesmo. Ser jovem é ter sua liberdade, em certos pontos, ter sua liberdade, sair pra passear, e isso eu não tenho mais (Esmeralda).
A maternidade precoce acelera a transição da infância para a vida adulta. Isso acontece por conta da exigência de responsabilidade e maturidade, determinando mudanças significativas no projeto de vida. Deste modo, pode-se mencionar que a vivência da maternidade foi percebida pelas adolescentes, como ruptura, mas também como um aumento da responsabilidade e como fator de amadurecimento (GONTIJO; MEDEIROS, 2008).
Eu me sinto uma criança, uma adolescente, ainda, porque eu perdi, né, minha adolescência toda, que eu ainda brincava de boneca, ai eu engravidei, ai ficou tudo pra trás, hoje eu fico tentando fazer coisas que era pra ter feito há muito tempo atrás, eu brinco com minhas filhas. É tanto que parece que sou irmã delas, falo nem parece que eu tô falando (Topázio).
Elas nos revelam o desejo de ser mãe, ainda que não exatamente no período em que ocorreu.
Tinha vontade de ser mãe, mas não nessa idade. (Jade).
Eu não pensava em ser mãe tão cedo, porque eu nem sabia cuidar do menino, quando nasceu, para mim era a mesma coisa de tá brincando com boneca. (Lazule).
Eu queria ser mãe, mas não assim de um bocado, porque eu sou contra o aborto. Eu queria parir mesmo, aí depois aconteceu, aí aconteceu de novo e de novo, eu tive que ficar (Esmeralda).
Pode-se questionar o parceiro, na avaliação do desejo pela maternidade.
Eu não, na tinha não [desejo de engravidar]. Eu tinha, eu tinha vontade, mas não no momento, e com a pessoa que eu tive, nem valeu a pena. Só por isso (Turmalina).
Apresentam-nos uma noção de fatalismo, como se não houvesse alternativa e a opção de não engravidar. Já Safira e Ametista, diferente das outras jovens, apontam o desejo de ser mãe, a vontade de construir um projeto e uma experiência que estejam incluídas crianças e projeção também na militância, quanto à reivindicação é a moradia.
Eu sempre quis ter filho, mas só consegui agora, com dezoito anos, eu vinha tentando desde os dezesseis anos (Safira).
Tinha muito desejo de ser mãe. Eu queria saber. Todo mundo tinha filho menos eu, aí eu queria saber como era a experiência de ser mãe. Como era, aí eu exagerei na dose, tive três (Ametista).
A possibilidade do aborto aparece e, por vezes, há tentativas:
Nisso aí [aborto] eu pensei muito. Depois eu não consegui, eu deixei, né? Eu tomei chá (Jade).
Já fiz aborto. Depois do mais velho. Eu fazia os abortos até os dois meses, quando fazia três, que é quando dizem que tá se formando, aí eu não tomava mais nada. Mas eu tomava sempre chá, chá de capim cheiroso, de boldo, aqueles chás horríveis mesmo, aguniado, remédio de verme, aí perdia, mas quando eu fazia três meses eu não fazia mais. Eu fiz sete abortos, é um direito meu, eu tenho o direito de ir e vir. Se eu não tivesse tirado eu já tava com dez (Ametista).
Nossas depoentes revelam que o corpo e a reprodução são lócus para reflexões conflituosas e paradoxais. Deste modo, novamente é Safira que confirma a exceção, salientando que nunca pensou na possibilidade de aborto, uma vez que já vinha tentando a gravidez há pelo menos dois anos.
Mudou tudo na minha cabeça, antes eu não pensava em nada, agora tenho que pensar primeiro nos meus filhos. E – Eu não saio, assim não, porque agora eu tenho meus filhos (Jade).
Antes eu brincava muito, saia, me divertia ia pra show e agora me dedico mais a ela [a filha]. Penso mais nela [a filha] do que em mim. (Perola)
A maternidade pode representar uma mudança na vida, a salvação, redenção de que se encontrava em uma vida imersa nas drogas.
Mudou a minha vida, graças a Deus. Houve muitas mudanças, a vida que eu tinha antes eu não tenho mais, graças a Deus. Tive que mudar a minha vida totalmente. Antigamente eu saía com as meninas, usava muitas coisas, muitas drogas, muita cachaça, muito homem. E, hoje em dia, eu não sou mais isso. Deixei, né? Porque eu tenho meu filho, amanhã ou depois, que ele já tiver grandão, porque ele já vai fazer onze anos, ele vai olhar e vai dizer o que pra mim? Isso, se eu der um mau exemplo pra ele. Quando ele for fazer algo de errado e eu falar, ele vai dizer ‘quem é a senhora?’ (Turmalina)
Para o futuro, essas jovens fazem planos, sonham. Mas não desejam mais uma maternidade. E admitem que a vida poderia ser outra, não fosse a gravidez precoce.
Não me arrependo de ter tido meu filho, jamais, isso aí eu não me arrependo nunca, mas eu me arrependo das coisas que eu perdi por ter engravidado dele. Que aí foi passando o tempo, eu não consegui concluir meus estudos, porque sempre eu tinha ele, no colégio que eu estudava eu ia de calça apertada direito, aí chegou um momento que a barriga já tava grande, e eu não podia ir mais, o diretor não liberava ir com outra bermuda, mas folgada e tal. E até hoje eu não consegui concluir minha oitava série. Tinha outros projetos pra minha vida, podia tá num emprego melhor, com uma vida melhor (Lazule).
Agora hoje, com a minha cabeça que eu tenho, eu não teria engravidado de ninguém. Não seria mãe, porque eu sinto muita falta dos meus quinze anos porque eu curtia muito, saia muito, me divertia muito, e até meu filho ficar nessa idade, foi um tempo de minha vida que parou. Porque eu nunca confiei deixar meu filho com ninguém, ficava com medo de alguém maltratar, foram cinco anos de minha vida que parou, aí depois de cinco anos, mesmo com meus vinte e dois anos, aquele pique que eu tinha com quinze eu já não tenho mais com vinte e dois. Sou mais de ficar em casa (Lazule).
Ainda assim, as mães da resistência avaliam a maternidade de maneira positiva.
Até agora eu não tirei aprendizado nenhum. Porque tem vez que eu me arrependo. Eu me arrependo bastante de ter tido tanto filho. Três filhos? É muito. Três filhos é muito. Mas a sensação de ser mãe é ótima, é algo que não tem explicação (Ametista).
As coisas que minha mãe passou comigo, quando eu era menor, ela dizia ‘vocês ainda vão ter seus filhos e ver o que eu passo com vocês ’. E é isso. Filho é responsabilidade. (Esmeralda).
Ser mãe é bom, ter um filho. Você ensinar a ele como é a vida. Agora posso ter ajuda de outras pessoas, como a minha mãe, meus familiares (Perola).
Entretanto, nos revelam que melhor seria evitar uma gravidez na adolescência,
Eu diria que antes dela engravidar, pensar bem na pessoa que ela tá. Se ele é uma pessoa boa com ela, trabalhar, tudo isso, porque filho é responsabilidade (Turmalina).
Pensar muito, mas muito mesmo antes de ter um filho sem, como posso me expressar, sem planejar, né?! Porque filho tem que ser uma coisa planejada, muito, muito e muito (Ametista).
Eu diria pras meninas evitarem, porque é trabalhoso. É bom, mas é trabalhoso. Muito trabalhoso, em termos de educação, alimento… (Esmeralda).
Quando o movimento social aparece como alternativa
Mapeamos distintas formas de participar do Movimento. Jovens que ocupam a Coordenação local de sua ocupação e outras que alegam não terem tempo de irem às caminhadas. Das mais ativas às que simplesmente “estão” no espaço do movimento, das reivindicadoras às mais centradas no universo restrito.
Topázio afirma que conheceu o Movimento através de uma vizinha, quando ainda morava com a mãe e com o companheiro. E que esta aconselhou que ela procurasse a ocupação. Safira, Lazule e Jade conheceram o MSTB através de suas mães, que passaram a integrar o movimento e, assim, trazem outros membros da família. Safira e Jade são irmãs e participam do MSTB há quatro anos, quando a mãe trouxe a família. Ágata, não diferente, passa a compor o Movimento quando se descobre grávida.
Eu vim morar depois que engravidei, aí eu vim morar aqui, eu vim para o movimento (Ágata).
De maneira geral, percebemos que a família é o grande impulso para que essas jovens passem a compor o MSTB, seja na condição de mães ou de filhas.
Meu irmão chegou aí viu um negócio aí invadindo, quando pensou que não, aí meu irmão “vamos embora, tem ali um barraco pra gente morar” aí eu vim junto com ele (Turmalina).
Eu tava morando no alto do Cabrito, aí teve uma chuva, uma chuva horrível. Aí, levantou o telhado da casa do meu irmão. O meu ficou querendo levantar. Um desespero total, de madrugada. Aí minha tia, mãe da minha prima aí ligou pra mim e mandou a gente ir pra lá pra outra ocupação do Movimento dos Sem Teto que tinha lá na Baixa do Sapateiro que pegou fogo. Aí a gente tava lá, aí depois Carla [coordenadora do MSTB] pegou e chamou a gente pra vir pra cá ajudar a ocupar, aí eu fiquei lá e ele [o companheiro] veio, aí depois de cinco dias, eu peguei e vim, que eu tinha terminado de ter a filha dele, eu tava com poucos meses (Ametista).
Cheguei no Movimento através da minha irmã, ela veio primeiro. Vai fazer um ano já (Esmeralda).
Uma amiga de mainha invadiu um prédio e aí a gente foi tudo morar junto. Depois a gente saiu, alugou uma casa e depois voltou de novo pro movimento (Perola).
O principal objetivo dessas jovens é a obtenção da casa própria, recuperando a ideia de que a militância tem uma causa e independe de situações individualizadas. A todos os seus membros, o que cria a identidade é estar dentro de um movimento cujo objeto é a fixação.
Espero conseguir minha moradia digna (Safira).
É conseguir a casa, não precisar ficar na rua (Ágata).
Eu espero uma casa, mas enquanto não sai, a gente tá aí pra lutar até conseguir (Esmeralda).
Eu espero que fique, que dê tudo certo. Que a gente tudo precisa mesmo, que dê tudo certo (Turmalina).
Espero ganhar uma casa (Perola).
Para as entrevistadas, é a moradia que as caracterizam como sem teto.
Ser sem teto é quem não tem onde morar (Turmalina).
Sem teto são pessoas que não tem onde ficar. E aí invade um lugar como invadiu aqui, que aqui não é nosso, a gente tá porque não tem onde ficar (Ametista).
Ser sem teto é uma pessoa que não tem onde morar (Perola).
Todas elas dizem participar das atividades do Movimento.
Nas reuniões, festas juninas, passeatas. (Jade);
Quando tenho tempo, vou à passeata. (Topázio);
Participo quando posso de palestra, reuniões. (Safira).
Participo da limpeza, das reuniões. (Perola).
Elas narram o dia a dia nas ocupações, marcado pelo convívio com a vizinhança, que pode ser harmonioso ou não:
As coisas que as coordenadoras passam pra gente, tudo direitinho, procura seguir, mas nem todos, né?! Nem todos seguem as ordens da casa, principalmente a limpeza, o respeito um pelo outro, a união (Esmeralda).
Aqui tem gente que tem suas desavenças e gente que não tem. Tem reunião, quando tem festa todo mundo se junta (Perola).
O dia a dia na ocupação é bom, só trabalho, só correria (Turmalina).
Aqui tem o dia de tudo. Fim de semana a gente faz uma festinha. Dia de quarta-feira é o dia da faxina, hoje mesmo é quarta, né? Quando não é dia de quarta é sábado, faz faxina no prédio inteiro. Mas quando não tem a faxina cada um limpa seus andares. Não tem muita coisa, não (Ametista).
Ametista nos revela que mesmo participando de um movimento social a atuação feminina no espaço público precisa ser legitimada, ao menos pelo companheiro. Em circunstâncias nas quais é melhor calar.
Ele [companheiro] participa do Movimento mais do que eu, porque quando tem as reuniões é uma raridade ele deixar eu ir. Ele quer que eu fique dentro de casa olhando os meninos, ele não deixa eu sair, não tem jeito. Ele diz ‘fique aqui, vai fazer o que lá embaixo, não tem nada pra você fazer lá embaixo. Tem que ficar em casa’ E eu fico calada, porque se eu for falar alguma coisa a gente vai acabar se estranhando dentro de casa (Ametista).
Como mães, participar do MSTB possibilita a construção de um futuro mais próspero, uma vez que a maternidade traz consigo a responsabilidade sobre outra vida. Família (aqui mais no sentido de filiação que relações conjugais) e casa são os mesmos lados da moeda. A família, como categoria sociológica, pode ser pensada como instância relacional e multifacetada, envolvendo aspectos econômicos, sociais e culturais (CAVALCANTI, ARAÚJO & SILVA, 2010).
O movimento mudou minha vida assim, eu tenho uma filha e eu tenho que dar o melhor pra minha filha. Não posso morar debaixo da ponte. Então, se eu morasse debaixo da ponte, eu sei que um bocado de pessoas mora ali na calçada. Pelo menos aqui no movimento, o pouco que eu recebo já serve pra comprar um gás, uma comida, uma roupa pra minha filha, uma sandália, por isso que o movimento mudou minha vida (Ágata).
Integrar o MSTB libera o dinheiro que seria pago em aluguel para melhorar a situação familiar.
Participar do Movimento trouxe muitas mudanças na minha, que pagava aluguel, essas coisas, hoje em dia já não paga. O bem paga aluguel ou bem come (Turmalina).
Eu gostei, porque melhorou bastante a minha situação, eu não tinha condições de pagar aluguel. Eu pagava esse mês, aí pro mês que vem já não tinha. Aí não tinha como pagar o aluguel, aí depois que a gente veio pra cá melhorou a situação total, o que eu espero é que se for sair daqui que saia, mas cada uma pra sua casa (Ametista).
E ainda pode resultar em mudanças na autoestima.
[Sobre o MSTB] eu tava muito fechada, parada e agora não, eu me expresso mais (Esmeralda).Quando indagadas dos motivos que as levam a participar dos movimentos de bairro (por transporte, água, luz, esgoto, escola, posto de atendimento médico, telefone, calçamento, custo de vida, creches para os filhos das mulheres que trabalham fora), costumam responder que é para “ajudar a família”. A justificativa apresentada, que tem como função legitimar a participação numa atividade exterior à casa, faz com que tal atividade apareça como continuação da casa, o “ajudar a família” fazendo com que o “mundo da casa” se estenda até o “mundo da rua”. É como esposa e mãe que a mulher diz participar das atividades sociais exteriores (CHAUI, 1996, p. 147) .
Há, também, as que visualizam no MSTB perspectiva não apenas para modificar sua vida, mas colaborar para relações sociais mais democráticas. Visto que os moradores das ocupações são, muitas vezes, marginalizados.
Sou coordenadora local do movimento. Eu me elegi no domingo passado. Eu me elegi agora, então a gente não teve tempo de fazer nada. Mas a gente tem um trabalho muito bacana pra realizar na nossa comunidade. Porque, assim, a gente quer botar um trabalho de conscientização, porque a gente que mora do lado de cá é muito marginalizado pelo pessoal do lado de lá. Eles entendem que por morar na favela só tem ladrão, só tem maconheiro, só tem o que não presta. Então, a gente tá com esse plano de fazer esse trabalho, porque o pessoal do lado de lá, como a gente chama o pessoal do asfalto, passe a olhar mais pela gente, a gente ser tratado igualmente, em qualquer lugar que a gente chegar. É muita diferença de lá pra cá. Eles marginalizam muito a gente. Em todo lugar tem sua parte de marginais, como aqui pode ter um marginal, lá também onde eles moram no prédio deles, também deve ter. Só que eles olham pra gente muito diferente, então a gente quer fazer esse trabalho, pra gente fazer uma conscientização, pra eles olhar a gente diferente (Lazule).
No momento em que realizamos as entrevistas, estava em execução um programa do Governo Federal intitulado “Minha Casa, minha vida”, o que para essas mães soou com uma perspectiva de esperança e crença nas políticas públicas.
O governo tenta fazer as coisas, agora mesmo metade das pessoas vão sair daqui do Movimento dos Sem Teto, tem umas pessoas que vão ficar. Eu acho que eles [o governo] têm, que eles tão vendo que a situação tá degradante. Quando chove, isso aqui alaga tudo. Ali você nem consegue subir mais, aquele barro ali. Fica deslizando demais, não consegue descer, não consegue. A gente tem que trocar telha toda hora. Então o governo, pelo menos, eles tão reparando isso que não dá pra morar aqui, ou as pessoas faz de bloco ou as pessoas moram de taboa mesmo (Ágata).
As considerações de gênero não são esquecidas e sugerem que os homens são vistos como indivíduos, enquanto as mulheres são caracterizadas como famílias. Esse seria o argumento para explicar o maior número de mulheres nas ocupações.
Em vários aspectos as mulheres são mais oprimidas em relação aos homens. Porque a maioria dos homens é tudo cínico, descarado (Turmalina).
Tem condições de igualdade sim, mas só que as prioridades são das mulheres, mas parece que é dos homens. Porque somos mulheres, somos frágeis, deveríamos ter mais igualdade social, mas não temos (Ametista).
Agora até que tá melhorando. Agora tá melhorando. Porque antes mulher não podia trabalhar. Mulher tinha que ficar em casa, tomando conta da casa, tomando conta dos filhos. E agora não, tem até uma presidente que é mulher. E isso é culpa do machismo. Só eles podem (Esmeralda).
Considerações finais
A pesquisa sobre jovens mães do MSTB revela singularidade, e nos dá possibilidade de observar contrastes sociais e, portanto, a urgência/necessidade de registrar as histórias de vida. Discutir como mulheres que têm sua trajetória marcada por uma gravidez, ainda na adolescência, conciliam maternidade ou militância, ou esses teriam ligação direta, e a como atuação feminina no público seria legitimada por questões do privado foi o nosso interesse.
Para compreender este fenômeno, ouvimos dez jovens mulheres, entre dezoito e vinte cinco anos, que foram mães ainda na adolescência. Vale ressaltar que utilizamos aqui o conceito da Organização Mundial de Saúde que define como as gestações que ocorrem entre os dez e dezenove anos. Como técnica a escolha recai sobre Histórias de Vida, por acreditarmos que por meio da memória – entre o vivido e o narrado – estaríamos mais próximas do fenômeno/processo investigado.
Válido ressaltar que nos separamos com sujeitos distintos, com trajetórias diferentes, concepções e objetivos, às vezes, divergentes. No entanto, nos parece nítido que ser mãe entrelaçaria o público e privado na medida em que essas mulheres militam, participam de caminhadas, negam as condições de gênero que relegam a mulher ao local do silêncio ou da mera reprodução sexual e social.
Percebemos que o maior impulso para estas jovens-mulheres participarem do MSTB é a família, pelo menos o sentido e o imaginário representativo do que elas concebem por. Não são raros os relatos de quem conheceu o Movimento por meio de um membro da família. Na maioria, são as mães que fazem essa indicação. Nesse tocante, elas passam a integrar o MSTB quando estão grávidas ou quando já são mães, criando gerações de “mães da resistência”. Revelam-nos que o principal objetivo de comporem o Movimento é a obtenção da casa, do espaço de morar e, dessa maneira, sem que precise pagar aluguel, possam suprir outras necessidades familiares. Elas podem ser apenas ocupantes, ou seja, viver nas ocupações, ou serem militantes, participar das reuniões, cursos de formação ou ocupar cargos de coordenação. Mas, de alguma maneira, dão “resistência” e “representatividade” ao Movimento.
Tomando as falas dessas jovens é ainda possível recordar que a busca de acesso à cidadania e à justiça social, no caso brasileiro, é processo de longa duração. Novos significados, novas representações e, sobretudo, novas condições do viver e do morar impõem abordagens e olhares diferenciados, levando-se em consideração que a “feminização da pobreza” é uma realidade, mas as conquistas e avanços no sentido de políticas públicas e empoderamento femininos através de movimentos sociais organizados nos últimos quarenta anos também.
Footnotes
- O “Dois de Julho” marca a independência do Brasil na Bahia. Após a Proclamação da Independência, em 1822, as tropas portuguesas mantiveram na Bahia um foco de resistência, a população pegou em armas e após meses de lutas, em vários pontos do Recôncavo Baiano, conseguiu vitória sobre o exercito português. Todos os anos, a população vai às ruas, em um desfile que mistura o civismo e as peculiaridades da cultura baiana.
- Durante agosto e setembro de 2003, estudantes soteropolitanos, durante aproximadamente 20 dias, interditaram as principais avenidas da capital baiana, protestando contra o aumento nas tarifas dos transportes urbanos. Ver Documentário de Carlos Pronzato “A Revolta do Buzu” (2003).
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