Abstract
O presente ensaio busca discutir a opção do governo brasileiro pelo fortalecimento da agricultura de exportação como um dos sustentáculos de sua estratégia de desenvolvimento e os impactos dessa orientação sobre as demandas de superação da questão agrária brasileira marcada pela forte concentração da propriedade da terra, pobreza rural e ameaça à soberania alimentar. Com esse propósito, argumenta-se que o modelo de inserção externa primário-exportador de commodities agrícolas apropriou-se da renda terra e da produtividade do ambiente rural, desembocando numa estratégia de desenvolvimento subordinado e associado e mantendo-se dentro dos marcos da dependência e do subdesenvolvimento sem solucionar os graves problemas no campo e seus impactos negativos sobre a vida das pessoas.
Introdução
A última década, situada em um contexto internacional favorável, de protagonismo do capital financeiro, de alta demanda por recursos naturais e commodities agrícolas (das quais o país é grande produtor), foi um período de expansão da base primário-exportadora na economia brasileira. É um período que reforça o agronegócio na economia nacional.
O ajuste econômico do país em função dos efeitos da crise financeira mundial reforçou a inserção no mercado externo de certos produtos agrícolas, e a renda fundiária se posicionou como filão da acumulação de capital no conjunto do sistema econômico nacional, e não mais somente do setor agrário (delgado, 2012).
Em síntese, a condição da expansão da economia brasileira está vinculada à inserção externa dependente do mercado de commodities, que, segundo delgado (2010, p. 124),
Caracterizam um estilo típico do subdesenvolvimento, que se repõe em pleno século xxi e do qual o pacto do agronegócio é parte integrante de peso. Mas a caracterização dessa questão agrária é mais geral e mais profunda. Integra a essência do projeto nacional de e requer um enfrentamento dentro e fora do modelo agrícola hegemônico.
No presente ensaio, pretende-se expor que a sujeição passiva ao agronegócio[1] ratifica o problema agrário nacional. Nestes termos, faz-se primeiro um percurso sobre a especialização externa primário-exportadora do agronegócio para, em seguida, tecer o eixo cognitivo da estrutura agrária. A síntese foi realizada a partir da revisão bibliográfica de parte da produção acadêmica sobre os temas; como também utilizou os dados empíricos, estatísticos e as informações disponibilizadas por instituições oficiais e de pesquisa acadêmica.
Especialização exportadora do agronegócio e seus reflexos
Em 2012, o mapa/sri[2] (ministério da agricultura, pecuária e abastecimento/ secretaria de relações internacionais do agronegócio) informava que as exportações brasileiras do agronegócio atingiram o montante recorde da série histórica anual com us$ 95,81 bilhões, tendo uma expansão de 0,9% (+ us$ 846 milhões) em relação a 2011, quando as exportações foram de us$ 94,97 bilhões. As importações, por sua vez, atingiram us$ 16,41 bilhões, 6,2% inferior a 2011; portanto, o saldo da balança comercial do agronegócio foi de us$ 79,41 bilhões.
Dos produtos agrícolas exportados, sete deles contribuíram fortemente em termos de incremento do valor absoluto. Foram eles: milho, soja em grãos, farelo de soja, álcool, algodão, carne bovina e fumo. Estes produtos, em conjunto, tiveram incremento de venda de us$ 6,56 bilhões, tendo, no geral, forte expansão do quantum exportado enquanto o preço médio de exportação recuou significativamente.
A ásia merece destaque como a região que teve maior aumento nas compras (+11,7%) e, em consequência, maior elevação de participação, passando de 32,3% para 35,7% no total adquirido, uma elevação de 3,4 pontos percentuais. A soma da participação da ásia com a da união europeia, os dois principais importadores, ficou em 59,1%, demonstrando uma elevação da concentração nas vendas, uma vez que no ano de 2011 os dois principais mercados tiveram participação conjunta de 57,4%.
Em 2011, o produto interno bruto (pib) do agronegócio brasileiro estimado pelo centro de estudos avançados em economia aplicada (cepea)[3], da esalq/usp, avançou 5,73% (a preços reais), totalizando r$ 942 bilhões (em reais de 2011, ou seja, descontada a inflação), e a economia como um todo se expandiu 2,7%, indo para r$ 4,143 trilhões, segundo o ibge. Com isso, a participação do agronegócio no pib nacional aumentou de 21,78% em 2010 para 22,74% em 2011[4].
Graças ao agronegócio, a balança comercial total do brasil manteve-se superavitária em 2011, em us$ 30 bilhões. Com isso, o país acumulou reservas internacionais acima de us$ 300 bilhões nesse período. Os preços em dólares recebidos pelos exportadores do agronegócio brasileiro têm crescido continuamente desde o ano 2000 e apresentou pico de valorização em 2012, com valor 125,8% superior ao de 2000. Com superávit comercial de us$ 20,8 bilhões de janeiro a abril (2012) e us$ 77,95 bilhões em 12 meses, o agronegócio continuou a ser o principal fator de segurança do setor externo[5].
Para o presidente do bndes (banco nacional de desenvolvimento econômico e social), sr. Luciano coutinho[6], o agronegócio representa 22% do pib e tem sido o grande esteio da estabilidade econômica brasileira. Para coutinho, é o agronegócio que tem garantido um superávit comercial, assegurando um nível de reservas internacionais, as quais vêm ajudando a blindar nossa economia contra as crises internacionais.
Os dados acima mostram que, na última década, a opção primário-exportadora via agronegócio trouxe resultados relevantes para a economia nacional.
Esta expansão de exportação de produtos primários na economia suscita aspectos relevantes e preocupações sobre a tendência de queda da participação da indústria no pib e o impacto sobre a produção de alimentos, consequentemente, no preço desses.
O brasil, apesar de ter um setor industrial importante, vem experimentando redução deste na composição do pib.
Para delgado (2012), essa especialização primária no comércio internacional se dá com paralela e evidente perda de participação da maioria dos ramos manufatureiros e, como em geral a economia dos serviços pouco exporta, recai todo o peso do ajuste das transações externas sobre o setor primário.
Em síntese, significa que a terra está sendo convertida em commodities, com o fomento de políticas públicas, a custos sociais elevadíssimos que são socializados economicamente entre todos, enquanto benefícios apropriados pelos proprietários da riqueza.
Na economia alimentar, o curso dessa forma de especulação do capital financeiro global incursiona, conforme preconiza vandana shiva[7], assim:
Depois da crise americana do subprime e a quebra de wall street, investidores fugiram para o mercado de commodities, especialmente petróleo e commodities agrícolas. Enquanto a produção real não aumentou entre 2005-2007, a especulação em commodities cresceu 160%. Especulação esta que aumentou preços, que por sua vez somaram mais 100 milhões de pessoas ao grupo da fome (shiva, 2010).
Commodities agrícolas são agora “ativos financeiros” e atraem a atenção cada vez maior de especuladores, o que resulta num movimento capaz de impactar sobre as cotações de dos produtos agrícolas. A crescente conjunção entre o mercado de commodities e o capital financeiro tem sido um fator que contribui para elevação dos preços agrícolas. Quando a ciranda financeira das commodities dirige os preços dos alimentos, os investidores ricos só enriquecem ainda mais, e os pobres passam cada vez mais fome.
Em termos de disponibilidade produtiva, a tabela 1 mostra as posições do país no mercado mundial, tanto na condição de produtor como de exportador de commodities, e ainda aponta o percentual da produção exportada e, consequentemente, pode-se intuir o que é absorvido desta produção pelo mercado interno do país.
tabela1 – posição do brasil no mercado mundial
Fonte: dados do mapa/SRI
Nesta tabela, fica claro que o brasil se destaca como maior produtor de açúcar, café e suco de laranja, sendo deles também o principal exportador, bem como de soja em grãos e de carne de frango. No caso do milho, da carne bovina e suína, menos de 20% da produção é exportada, seguido pelo óleo de soja e carne frango com menos de 30% para o mercado externo, enquanto quase a totalidade da produção de suco de laranja é exportada.
Por outro lado, o país absorve em seu mercado interno em média 42% de tudo o que produz na agricultura exportadora. Tal amplitude percentual demarca e ressalta o papel do mercado interno na renda do agronegócio.
Entende-se que ocorre uma dupla tensão sobre a produção nacional: o crescimento do mercado externo e a demanda por alimento.
A produção de grãos se concentra na soja (45%) e no milho (38%), representando 83% na safra passada de grãos. A expansão da área ocupada com essas duas lavouras foi de 2,8 milhões de hectares, entre as safras 2005/06 e 2011/12, suplantando com folga a expansão das áreas destinadas à produção das demais commodities. Os outros grãos, principalmente arroz e feijão, base da nossa alimentação, tiveram redução de área passando de 12 milhões para 11 milhões de hectares no mesmo período. Nas lavouras de feijão e arroz, houve inflexão, passando no período de 12% para 9% da produção total de grãos. Deve-se salientar que a lavoura de cana-de-açúcar ampliou sua área em 30%, ocupando 8 milhões de hectares na safra 2011/12. Isto correspondeu a 16% da área de grãos.
A produção brasileira de grãos entre as safras 2005/2006 e 2010/2011 aumentou em 33%, saindo de 122,5 milhões para 163 milhões de toneladas. Nesse período, a área plantada cresceu 4,3% enquanto a produtividade média aumentou de 2,6 para 3,3 toneladas por hectare (+27,5%).
Tal situação produtiva e de produtividade não se refletiu nos preços, que mantiveram no período uma tendência de alta, proporcionando um incremento de 43,6% do valor bruto de produção, cujo valor passou de r$ 144,3 bilhões para 207,5 bilhões.
Quanto aos preços dos alimentos ao consumidor, estes fecharam o ano de 2012 com níveis muito acima do resto dos produtos de consumo no país. De fato, a inflação de alimentos do brasil foi 70% mais alta que a inflação geral, no encerramento do ano.
O índice nacional de preços ao consumidor amplo (ipca) de janeiro de 2011 mostrou que os preços dos alimentos continuaram subindo e atingiram 1,99 %, superando o resultado de 1,03% de dezembro. Constituiu-se na maior alta de grupo, detendo 0,48 pontos percentuais do índice. Dessa forma, o grupo de alimentação e bebidas respondeu por 56% do ipca[8].
Portanto, a dinâmica dos preços não é somente uma questão de especulação, mas também alimentar. Isto posto, resgatam-se alguns temas recorrentes da situação alimentar rural, dados os seus reflexos na questão agrária.
A pesquisa de orçamentos familiares – pof 2008/09 (ibge – instituto brasileiro de geografia e estatística) mostra que a quantidade de alimentos consumidos era habitualmente ou eventualmente insuficiente para 35,5% dos entrevistados ou um terço dos brasileiros. No ambiente rural essa percepção sobe para 45,6%, e nas áreas urbanas esse porcentual registra 33,6%.
No padrão rural de distribuição de renda domiciliar per capita, a pesquisa nacional por amostra de domicílio – pnad/2011[9] apresentou o seguinte: 55,5% dos domicílios rurais obtiveram renda de até dois salários mínimos, e 38,8% foi de até um salário mínimo. Grosso modo, pode-se observar que a maioria dos estabelecimentos rurais encontra-se num extrato de renda familiar até 2 salários mínimos. Cerca de 13 milhões de domicílios, em que se inclui grande parte da população rural, inclusive da agricultura familiar, se situam em economia de subsistência (na qual a renda dos trabalhadores está aquém das suas necessidades de sobrevivência).
Na pnad/2011, entre a distribuição das pessoas ocupadas, 15,8% estava na atividade agrícola. Das pessoas ocupadas, eram 28,4% empregados, 29,6% por conta própria, 25,6% trabalhadores na produção para próprio consumo e 14% não remunerados. O rendimento mensal médio foi de r$ 452,00 (menos que um salário mínimo vigente[10]).
O cenário agrário atual se configura numa agricultura moderna e industrial convivendo com um setor não conjugado ao moderno (trabalhadores rurais sem terra, posseiros, quilombolas, índios, etc), resultantes da imutável questão agrária (desde o período colonial): concentração de riqueza (terra); desemprego ou não trabalho.
Essas condições adversas foram (e ainda são) fatores de exclusão social, o êxodo rural de trabalhadores e produtores em economia familiar, constituindo o cerne da questão agrária pretérita e atual, conforme assertiva de rangel (2000, p. 144-145):
Um descompasso entre os dois processos – de liberação de mão de obra pelo complexo rural ou autarcia familiar e de integração dessa mão de obra no quadro da economia social (de mercado ou socialista) – é precisamente o traço dominante do fenômeno estudado como crise agrária.
O êxodo crescente de grandes contingentes de trabalhadores e habitantes rurais e as suas deletérias consequências são conhecidas por todos, e estão a amalgamar nas periferias urbanas numa complexa teia de ausências e exclusões socioeconômicas.
A estrutura fundiária permanece com distribuição desigual da terra e alto grau de concentração fundiária presente no território nacional, o que configura um índice de gini (2012) de 0,843[11].
Entre os anos de 1975 a 2006 o grau de concentração fundiária no território brasileiro permaneceu praticamente inalterado; o índice de gini, para desigualdade de terra, registrado para 2006 foi de 0,856; não muito diferente do mesmo índice para os anos 1995, 1985 e 1975 que foram, respectivamente, 0,857; 0,858 e 0,855 (hoffmann et al., 2010).
O sistema nacional de cadastro rural (sncr) do incra (instituto nacional de colonização e reforma agrária) registrou em abril de 2012 que havia 605,4 milhões de hectares em poder de 5,4 milhões de imóveis, distribuídos conforme a tabela 1. Ao se observar atentamente os dados, destacam-se dois extremos: os imóveis com menos de 10 ha, que são 34,1% do total ocupando somente 1,5% da área total – em média de 4,7 ha –, enquanto os com mais 100.000 ha (menos de 1%) ocupando 13% da área total, com área média de 379.204,39 ha.
Ainda segundo o scn, os imóveis de proprietários são 3,8 milhões ocupando 464,3 milhões de ha, enquanto os de posseiros são 1,6 milhões ocupando 136,1 milhões de hectares; os restantes estão com situações jurídicas não informadas. Os proprietários com imóveis com menos de 100 ha (84,6%) ocupam 16,2% da área total de propriedades, enquanto os com mais de 1000 (2%) detém 52,3%. Os imóveis com posse com menos de 100 ha (90,0%) ocupam 21,6% da área total de posse, enquanto os com mais de 1000 ha (1,1%) têm em poder 53,4%.
tabela 2 – estrutura fundiária brasil (2012)
fonte: incra. Sistema nacional de cadastro rural (2012).
O censo agropecuário de 2006 apontou que, dos 5,17 milhões de estabelecimentos existentes, 84,4 % (4,36 milhões) eram da agricultura familiar. Este contingente de produtores ocupava uma área de 80,25 milhões de hectares, que representava 24,3% da área ocupada pelos empreendimentos agropecuários. Por conseguinte, os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem somente 15,6% dos estabelecimentos, ocupavam 75,7% da área (gráfico 1). A agricultura familiar ocupava somente um quarto, enquanto a patronal três quartos da área total dos estabelecimentos, confirmando que o predomínio fundiário da economia patronal contrasta com predomínio demográfico da economia familiar. Apesar da defasagem temporal dos dados do censo agropecuário de 2006, esse quadro fundiário rural permanece atual.
fonte: ibge – censo agropecuário (2006).
Esse contorno da estrutura fundiária, segundo o censo demográfico de 2010, abriga em torno de 16 % do total de habitantes do país (190.756). Essa proporção se diferencia por região: nas regiões nordeste e norte, essa proporção é maior, 26,47% e 26,87%, respectivamente. Na região mais urbanizada (sudeste), apenas 7,05% reside na zona rural. Paradoxalmente, é no sudeste que se encontra a segunda maior concentração de população rural (19%), perdendo a primeira posição apenas para a região nordeste que concentra 47,8%.
Essa realidade agrária acontece porque houve (e há) um pacto agrário. A terra concentrada por força dos interesses da oligarquia rural, articulada com os do capital, converte o estado num verdadeiro lócus de conciliação dos interesses convergentes e divergentes das classes possuidoras e dirigentes do país; e tudo mais, principalmente, as inquietações e implicações sociais, fundiárias e ambientais, ficam à margem (silva, 2012).
A professora maria da conceição tavares (2000, p. 137) enuncia esse pacto de dominação ao incursionar sobre as raízes do subdesenvolvimento (dicotomia atraso/modernização) e ao reavaliar o que retardou a construção de uma nação democrática em nosso país:
(…) A nossa peculiar “revolução burguesa”, começada há pelo menos 150 anos, em vez de permitir a passagem a uma “ordem competitiva”, manteve um pacto de dominação social férreo entre os donos da terra, o estado e os donos do dinheiro, que se caracterizou, do ponto de vista político, por uma oscilação permanente entre uma ordem liberal oligárquica e um estado interventor autoritário.
Ainda de acordo com conceição tavares, a permanência deste pacto de dominação envolve três ordens de fatores estruturais: a apropriação privada e a concentração da terra; relações patrimonialistas entre as oligarquias regionais e o poder central por intermédio de sua representação política; e o caráter dependente ou associado da burguesia nacional com capitalismo financeiro internacional. Portanto, a ocupação mercantil e o domínio político do território tornam os “donos da terra” indispensáveis ao pacto de dominação. Sobre esse caráter oligárquico rural, a professora argumenta (2000, p. 139):
O caráter oligárquico fundamental do pacto de dominação burguesa não foi alterado pelas crises sucessivas, mudando apenas a hegemonia política das oligarquias regionais e o peso relativo das frações de classe dominante, mas preservando – em qualquer tipo de regime de governo – as relações de domínio fortemente autoritário e politicamente excludente das classes subordinadas. Nossas modernizações conservadoras tampouco suprimiram o caráter rentista e patrimonialista de nossas oligarquias no processo de acumulação de capital e poder. Este caráter, embora modificado, mantém-se tanto na dinâmica da expansão mercantil-agrária como no processo de acumulação urbano-industrial, marcando como característica fundamental os empreendimentos do nosso patronato nacional.
Diante dos argumentos de tavares, é possível ressaltar que, na última década, o modelo de acumulação de capital da tríade do pacto agrário se fortaleceu. Por um lado, no mercado externo com a expansão das commodities e, por outro, no mercado interno com uso privado dos recursos da terra. Consequentemente, tal arranjo implica a apropriação da renda e da terra decorrente da alta dos preços agrícolas e dos preços de terra e da retomada virtuosa do crédito rural.
A tabela 2 mostra a inflexão simultânea do preço de terra e do crédito. Mostra que, no período, houve um incremento significativo no preço de terras, de cinco a sete vezes para todos os tipos de terra. Essa tendência de alta dos preços de terra foi unânime em todos os estados. A política fundiária recente também vem estimulando o mercado de terras com a discriminação e titulação de terras públicas; certificação de imóveis on-line, entre outras.
Tabela 3 – expansão do crédito rural e do preço de terras, 2000/12
fonte: anuário estatístico do crédito rural – banco central do brasil[12] evalor da terra nua – instituto de economia agrícola, saa/sp[13].
Esta tabela também aponta a tendência de crescimento dos recursos do crédito rural (176%). O crédito rural veio associado a uma série de políticas públicas de fomento e apoio como o seguro rural; instrumentos de apoio à comercialização como aquisição do governo federal (agf) e política de garantia de preços mínimos (pgpm); financiamentos de garantia de preços aos produtos, como empréstimos do governo federal (egf); entre outras. Os recursos disponibilizados para incremento creditício foram:
- do tesouro nacional;
- os recursos obrigatórios;
- da poupança rural;
- os recursos livres;
- dos fundos constitucionais;
- do fundo de amparo ao trabalhador (fat);
- do fundo de commodities;
- banco da terra;
- governos estaduais;
- funcafé; e
- recursos externos.
Esta sistemática financeira se se complementa com as equalizações (diferença da taxa selic e as taxas subvencionadas do sncr – sistema nacional de crédito rural), realizados com recursos do tesouro.
Segundo delgado (2010), a repartição do excedente, no plano interno, na fase expansiva da demanda externa por commodities, se caracteriza basicamente como modelo de rendas de monopólio. Estas refletem, primeiramente, a propriedade da terra e a forma concentrada de sua distribuição; em segundo lugar, sua localização e a qualidade intrínseca dos recursos naturais explorados; em terceiro lugar, o acesso a fundos públicos subvencionados, propiciadas pelas vantagens conferidas a emissão da dívida agrícola, sob respaldo de hipotecas, e finalmente as patentes tecnológicas envolvidas na difusão do pacote tecnológico.
Assim, o ajuste externo da economia nacional torna viável um peculiar projeto de acumulação de capital, para o qual é essencial a captura da renda da terra, juntamente com a lucratividade do conjunto dos capitais consorciados no agronegócio (delgado, 2010).
Em síntese, o modelo de inserção externa primário-exportador de commodities agrícolas apropriou-se da renda terra e da produtividade do ambiente rural, aportando um desenvolvimento subordinado e associado, mantendo-se dentro dos marcos da dependência e do subdesenvolvimento. E o governo, ao incentivar esse processo de especulação externa pelo agronegócio em sua política econômica, desconsidera a concentrada distribuição da estrutura fundiária vigente e, consequentemente, o uso privado da terra, cujo agronegócio captura a renda da terra (mercado de terras com preços elevados) e modela a extração do excedente econômico por meio dos ativos financeiros, creditícios e hipotecários.
Comentários finais
A política pública de fomento voltada preferencialmente ao agronegócio tem destinado a parte mais substantiva do crédito e do financiamento além dos melhores esforços da pesquisa e desenvolvimento ao segmento que, voltado à exportação, contribui decisivamente para os resultados do pib brasileiro, compensando as consequências do estiolamento do setor industrial. Dentre as consequências dessa opção, a mais preocupante segue sendo o risco que o desestímulo à produção de alimentos relacionados à cultura gastronômica e à história alimentar brasileiras poderá representar para a soberania alimentar.
A concentração fundiária e as novas formas de controle e de usos do território rural pelos agentes envolvidos com a produção de commodities têm liberado segmentos importantes da população antes envolvida com a produção diversificada daquilo que genericamente tratamos, no cotidiano, por comida[14]. Os efeitos desse movimento começam ser identificados quer seja pela presença cada vez mais relevante de produtos elaborados, processados, congelados e que têm na suas bases um estreito conjunto de espécies com franco domínio daquelas que compõe a pauta de exportação, quer seja pelos efeitos que essa transição alimentar exerce sobre os agravos de saúde.
Portanto, o governo, ao imprimir e manter uma políticas de estímulo e apoio à expansão das commodities com forte patrocínio do capital financeiro, promove um arranjo resignado, mas consciente, do deslocamento da acumulação de capital para setores com o controle da terra e portadores da renda fundiária. Assim, sob essas diretrizes que reforçam a (re)primarização da nossa economia como estratégia de desenvolvimento, o governo brasileiro não só mantém intocadas as contradições que conformam a nossa questão agrária como, também, avança em direção contrária ao seu discurso de emular o desenvolvimento autônomo e socialmente referenciado do país, garantir a consecução dos direitos sociais, em especial a do direito humano à alimentação, sustentados por condições de segurança alimentar que contemplem a justiça no campo e a soberania alimentar. Mais uma vez, a atitude que permite superar a distância entre as intenções e os gestos sucumbe ao discurso.
Footnotes
- Convém definir a abordagem, por ora adotada, sobre agronegócio: trata-se da associação do grande capital industrial com a grande propriedade fundiária; essa associação se realiza sob a estratégia do capital financeiro, perseguindo o lucro e a renda da terra, com o patrocínio de políticas do Estado, segundo Delgado (2012, 1985).
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- CEPEA/ESALQ define o Produto Interno Bruto (PIB) como o valor da produção de bens e serviços finais, deduzindo-se o consumo intermediário. O cálculo do PIB da agropecuária e do agronegócio é feito pela ótica do valor adicionado, a preços de mercado, computando-se os impostos indiretos líquidos de subsídios e deduzindo-se a dummy financeira. Disponível em: <http://www.cepea.esalq.usp.br>. Acesso em: 15 jun. 2013.
- Disponível em: <http://www.cepea.esalq.usp.br>. Acesso em: 2 jun. 2013.
- Disponível em: <http://www.cepea.esalq.usp.br>. Acesso em: 3 jun. 2013.
- Entrevista disponível em: <http://www.revistacanavieiros.com.br/conteudo/bndes-otimista-com-o-agronegocio>. Acesso em: 7 jun. 2013.
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- Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2013.
- Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2013.
- Salário mínimo de 2011 (Lei nº 12.382/2011): R$ 545,00.
- Calculado pelos autores, a partir da base de dados do SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural) do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Fórmula utilizada para cálculo de IG = 1 – (Yi+1 + Yi) (Xi+1 – Xi), apud Hoffmann (1967).
- Disponível em: <http://www.bcb.gov.br>. Acesso em: 24 jun. 2013.
- Disponível em: <http://ciagri.iea.sp.gov.br>. Acesso em: 24 jun. 2013.
- A expressão “produção de comida”, aqui, é empregada como forma de estabelecer uma diferença com a ideia genérica de alimentos associada às commodities de exportação que, na realidade, são mercadorias empregadas na composição direta e indireta de produtos alimentares. A noção de “comida”, portanto, assume aqui o significado da diversidade de produtos que historicamente compõem a dieta brasileira.
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