… penso que qualquer pessoa que se envolva seriamente nos estudos culturais como prática intelectual deve sentir, na pele, sua transitoriedade, sua insubstancialidade, o pouco que consegue registrar, o pouco que alcançamos mudar ou incentivar à ação. Se você não sente isso como uma tensão no trabalho que produz é porque a teoria o deixou em paz. Stuart Hall (2003a, p. 213).
Conheci os escritos de Stuart Hall em meados dos anos 1990. À época, eu estava cursando o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, sob orientação da professora Maria Lúcia Castagna Wortmann. Vivi o período de criação, no referido Programa, da Linha de Pesquisa “Estudos Culturais em Educação”. Lembro que a circulação entre professores e alunos dos textos de Stuart Hall desencadeou um entusiasmado movimento de articulação das pesquisas em educação com as análises culturais provenientes do grupo de Birmingham. Um movimento antropofágico de deglutição de conceitos, modos de escrever e pesquisar. Passamos a ver nossas próprias questões investigativas, nossos contextos, com outros olhos.
Os estudos dos textos de Stuart Hall nos anos 1990, em uma Faculdade de Educação, abriu um enorme leque potencial de investigações que colocaram em cena nas pesquisas educacionais, de forma mais evidente e ampliada, questões culturais de etnia, de raça, de gênero, de sexualidade, de identidade, de consumo. Com isso, o enfoque em categorias (sob forte inspiração nas teorizações marxistas) como as de classe social, de trabalho, de produção e de reprodução social, tiveram sua centralidade contestada.
Impossível deixar de lembrar das traduções precárias (feitas apenas para circulação interna entre os alunos e os professores) dos textos de Hall e de outros autores e pesquisadores do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS). Estive envolvido com o esforço da tradução, conjuntamente com outros colegas, de um livro de Paul du Gay, Stuart Hall, Linda Janes, Hugh Mackay e Keith Negus chamado: “Doing cultural studies: the story of Sony walkman”. Estudamos este material e muitos outros através de um Seminário ministrado pelo professor Tomaz Tadeu. O ano era 1996. À época meu inglês era muito insuficiente para tão árdua tarefa. Isso permite antever a dimensão do esforço dedicado aos estudos dos textos que nos empolgavam, nos mobilizavam, nos remetiam a novas perguntas, a novos traçados de pesquisa. Tal livro marcou minha formação de pesquisador ao articular, em uma linguagem envolvente, discussões sobre cultura, mídia e identidade. A noção de que negociamos cotidianamente, em redes assimétricas de saber-poder, nossas identidades, (re)inventando-as incessantemente, sem que esse processo cesse ou se defina, impactou-me muito à época. Antes eu imaginava carregar uma essência, uma identidade que era só minha, desde sempre grudada em minha “alma”.
Stuart Hall (2000) ensinou-me que as identidades têm a ver “com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo que nos tornamos” (p.109). Assim, a construção de identidades estaria vinculada a um processo de “invenção da tradição” e, dessa forma, aquilo que nos tornamos tem ligação pouco estreita com uma pretensiosa possibilidade de volta às raízes. Tal processo estaria, assim, vinculado a “uma negociação com nossas rotas”, ou seja, com tudo aquilo que nos foi formando em diferentes momentos de nossa história.
Nas palavras de Hall (2000), a identidade é um conceito “sob rasura”, ou seja, impróprio, instável e não-necessário. Dessa forma, segundo esse instigante autor, o conceito de identidade necessita ser problematizado em suas produções deterministas e essencialistas, bem como em relação a sua própria necessidade de elaboração, de modo que seja amplamente marcado o seu caráter provisório e, também, político. Hall (2003a) argumenta terem sido questões raciais, juntamente com o feminismo, que colocaram em xeque o trabalho dos estudos culturais britânicos, quando ainda (até os anos da década de 1980) estavam predominantemente “em luta” com as teorizações marxistas. Ao mesmo tempo em que passavam a tematizar questões relativas à raça, à sexualidade e ao gênero, os estudos culturais passaram a assumir a “virada lingüística”, ou seja, tais estudos, sob a influência dos próprios trabalhos de Hall, passaram a destacar a “importância crucial da linguagem e da metáfora lingüística para qualquer estudo da cultura” (HALL, 2003a, p. 211). Segundo o estudioso, as “questões raciais foram fontes extrínsecas importantes na formação dos estudos culturais” (p. 210), nesse “desvio necessário” do campo à descoberta da discursividade e da textualidade, sendo, então, configuradas como eixos importantes das práticas culturais para os quais os estudos culturais têm estado interessados enquanto comprometidos com uma agenda política sintonizada com as minorias (em termos de poder simbólico).
Gostaria também de enfocar, brevemente, a questão do sujeito nas teorizações de Stuart Hall, aproximando-o de Michel Foucault, pois em ambos o sujeito é tomado em articulação com as formações discursivas e não-discursivas. Hall (2000), embora siga as teorizações de Michel Foucault a respeito da noção de sujeito, problematiza o pensamento do filósofo – tanto em sua fase arqueológica (centrada nos estudos de práticas discursivas) como, também, genealógica (centrada no estudo das relações de saber-poder) – com relação a sua pouca argumentação a respeito dos modos de se interromper, impedir ou perturbar “a tranqüila inserção dos indivíduos nas posições-de-sujeito construídas” pelos discursos (p.122). Para Hall será em sua última fase (ética) que o filósofo, preocupado com as “tecnologias do eu”, destacará práticas “que podem impedir que esse sujeito se torne, para sempre, simplesmente um corpo sexualizado dócil” (p.125). Hall chama a atenção que o descentramento do sujeito não significaria sua destruição e, nessa direção, propõe pensá-lo como articulado às práticas discursivas. O autor busca destacar, então, um papel ativo do sujeito na negociação, transformação e reconstrução do significado, assumindo, seguindo Foucault, a noção de um sujeito histórico (não de um sujeito que seria fonte de todo conhecimento ou, ainda, transcendental) que está ligado de forma contingente às práticas discursivas de seu tempo.
É interessante registrar, ainda, que os textos de Hall foram importantes não apenas para meus trabalhos de pesquisa, mas com a formação inicial e continuada de professores de ciências e de biologia. Pude acionar, através de Hall (1997), um entendimento das práticas culturais que ampliava, quase infinitamente, as possibilidades articulatórias a partir das temáticas, até então, vistas como “próprias” à biologia e ao seu ensino. Isso significou assumir o entendimento de que as diferentes instâncias culturais (cinema, escola, televisão, jornal, publicidade, literatura) produtoras dos artefatos (filmes, livros didáticos, programas televisivos, reportagens jornalísticas, cartilhas) que consumimos diariamente também estão implicadas, para além da ciência que transcorre nos laboratórios, nos modos como aprendemos a ver, a ler, a narrar o mundo vivo. Aliás, a própria biologia passou a ser vista por mim como uma prática cultural.
Por fim, gostaria agora de apontar algumas breves anotações que fiz à lápis (talvez em diferentes momentos da minha trajetória profissional) em dois textos de Stuart Hall (2003a e 2003b) que gosto muito: “Estudos Culturais: dois paradigmas” e “Estudos Culturais e seu legado teórico”. Ambos publicados no livro “Da diáspora: identidades e mediações culturais” organizado e compilado por Liv Sovik. A primeira edição do mesmo no Brasil se deu em 2003, ano distante dos tempos em que já nos debruçávamos nos textos do autor.
No primeiro anotei (escrevi ao lado das páginas dos textos): “é interessante ver como o foco de Hall está nas relações”; “ele foge de uma abordagem de causas e efeitos”; “a cultura passa a ser ordinária”; “há um escape deliberado do marxismo”. No segundo rascunhei: “há uma recusa das metanarrativas”; “o projeto dos estudos culturais está aberto ao desconhecido e há uma vontade de conectar-se e há um envolvimento com as escolhas que se faz”; “é incrível essa ideia de que a teoria que vale a pena reter é aquela que temos que contestar e não a que falamos com fluência”; “o que gostaríamos de interromper em nós?”; “já no estruturalismo se falava do papel instituidor da linguagem, mas com o pós-estruturalismo ressalta-se a questão do poder e de seus efeitos”; “há um reconhecimento em Hall das produções dos movimentos sociais”; “algo sempre escapa”…
O que parece não escapar é a atualidade, a pertinência política, os efeitos em nós e nas práticas que nos enredam dos textos de um dos autores mais instigantes e desafiadores da segunda metade do século XX: Stuart Hall.
Florianópolis/Brasil, 01 de abril de 2014.
Works Cited
HALL, Stuart. Estudos Culturais e seu legado teórico. In: SOVIK, Liv (Org.) Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003a.
_____. Estudos Culturais: dois paradigmas. In: SOVIK, Liv (Org.) Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003b.
_____. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
_____. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul/dez. 1997.