
Faltando dias para a eleição presidencial, no dia 5 de outubro, com tantos temas em jogo (veja aqui um resumo), a novela política e ideológica do Brasil segue em suspenso. Ao invés de entrar nesses debates, discutirei uma nova política em nível menor, o do município de São Paulo. Os eventos atuais na cidade me levaram a considerar o seguinte: o que acontece a uma sociedade quando a urbanização está completamente orientada para o lucro? Se houver desenvolvimento social do espaço urbano, como será?
Durante a minha última estadia na cidade, entre maio e agosto de 2014, algo curioso ocorreu. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT) criou o Plano Diretor (agora referido como PDE, “E” significa “estratégico”), um complemento ao Estatuto da Cidade (2001). Na verdade, o PDE está longe de ser um esforço individual por parte do prefeito. Em vez disso, foi resultado de mais de nove meses de debate, envolvendo 114 audiências públicas, incluindo diretamente mais de 25 mil moradores. O plano de desenvolvimento urbano, criado em 30 de junho de 2014, foi sancionado um mês depois. Com um mandato de dezesseis anos para “humanizar” o desenvolvimento urbano, valorizar o meio ambiente, aliar o conceito de “função social “à urbanização, além de apoiar “iniciativas culturais”, a experiência do PDE em São Paulo merece a atenção de todos.
Sim, chegamos a esse ponto. Por gerações, desde o boom da industrialização e da grande onda modernista, uma montanha-russa financeira que empurrou São Paulo ao centro econômico no início do século 20, a cidade não dispunha de nenhum plano sério. A urbanização ocorreu em sua maior parte em função da especulação imobiliária, com milhões de deslocados, residentes migrantes improvisando espaços residenciais e comerciais, bem como serviços básicos, como eletricidade, água e transporte. São Paulo tem tomado forma, como resultado de acordos de curto prazo, amplificados por uma infra-estrutura maciça dos meios de comunicação comerciais, e não por planos sócio-geográficos sustentáveis.
Por que o PDE agora? Houve uma mudança de cima para baixo e o contrário também. Ora, Haddad tem sido comparativamente mais proativo do que prefeitos progressistas anteriores, tais como Marta Suplicy (2001-2004) e Luiza Erundina (1989-1992). Em retrospectiva, as administrações da cidade de São Paulo têm abertamente apoiado o desenvolvimento “wild west” combinado às forças policiais repressivas para controlar os protestos populares. O Partido dos Trabalhadores ou qualquer partido com agenda similar raramente ganha em São Paulo. Talvez, a mudança mais importante tenha sido a atitude e e a organização de base (grassroots) em torno da questão da moradia. Ocupar e reaproveitar prédios abandonados para moradia e centros culturais tornaram-se práticas comuns nos dias de hoje, especialmente em bairros centrais, mas também em alguns bairros da periferia. Grupos como FLM (Frente de Luta pela Moradia) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) têm sido protagonistas na sensibilização para as questões cada vez mais urgentes relacionadas à moradia e à especulação imobiliária.
O PDE é uma nova tentativa, robusta, para reestabelecer o “social” no desenvolvimento urbano. A especulação imobiliária é um jogo de baixo ou nenhum risco para a elite que tem o capital. Ela se beneficia não só da mídia publicitária,, cheia de panfletos de sonhos distribuídos em quase todos os semáforos, de outdoors em avenidas e rodovias, e propaganda na Internet, mas também frequentemente conta com o apoio do estado. Uma ala dos protestos contra a Copa do Mundo criticou precisamente as conexões entre o desenvolvimento do megaevento e o aumento da especulação imobiliária.
Não é que as administrações políticas dos últimos anos não tenham levado em conta o planejamento urbano. Órgãos burocráticos, como EMURB (Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo) já existem há décadas. Criada em 1971, a Emurb usa fundos públicos para a renovação de edifícios históricos, como o Edifício Martinelli, uma marca da indústria paulista moderna e gestão de elite. No entanto, nunca houve qualquer menção ao desenvolvimento sustentável e muito pouca ação no desenvolvimento de moradias populares, além dos projetos habitacionais distantes, que muitas vezes demonstraram o pior do populismo: infra-estrutura de má qualidade, resultando em políticas rápidos e escândalos subsequentes. Em 2009, a EMURB foi dividida em duas empresas públicas. A SMDU (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano) é a agência mais pertinente. Em maio de 2013, a SMDU foi reorganizadoa em face de um potencial PDE.
Em um mapa novo de São Paulo, o governo dividiu a cidade em setores para destacar os objetivos específicos do PDE. As categorias de desenvolvimento sustentável e igualitário propostas abordaram o problema em nível micro (bairro) e macro (a cidade como um todo). Por exemplo, território e sociedade se unem numa das iniciativas, conhecida como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Sociais). Na sua versão atual, o projeto prevê que a cidade irá utilizar fundos públicos para desenvolver até 33 quilômetros quadrados, sessenta por cento dos quais para famílias com renda inferior a 3 salários mínimos (cerca de 2.100 reais por mês). Em contraste à habitação pública anterior, esta construção é projetada não para a periferia, mas para o centro da cidade e bairros históricos, como Bela Vista, Brás, Santa Ifigênia, Campos Elíseos e Pari. Além disso, semelhante a um conjunto de leis de urbanização em Nova York, o PDE exige “cotas de solidariedade,” que estipula que qualquer proprietário (pessoa física ou jurídica) de uma propriedade com uma área superior a 20.000 metros quadrados deve dedicar 10% do espaço de habitação “social” em conformidade com o Estatuto da Cidade. Este espaço deve ser no local ou numa área do mesmo bairro.
Mudanças inspiradoras, mas será que pegam?
No Brasil, a crença na lei é sempre ligada à fiscalização, o processo complexo de regulação. Como foi observado várias vezes nos últimos dois meses, por Raquel Rolnik, em seu blog, há atualmente uma desconexão entre o PDE e a realidade de aplicação da lei. Como alertado anteriormente, os ativistas certamente sabem em o que o PDE implica, uma vez que eles e os seus representantes contribuíram para sua formulação. No entanto, o mesmo não pode ser dito para a polícia ou, infelizmente, muitos juízes, pois eles continuam a ignorar ou recusar-se a aceitar o conceito de função social da cidade. Para os investidores imobiliários, a “função social” do planejamento urbano representado pelo novo PDE é um dreno no lucro e um obstáculo injustificado ao desenvolvimento. Esta minoria tem muitos porta-vozes à sua disposição para culpar a cidade por causar especulação. Ironia brutal de braços com fingida ignorância.
A visão do Plano Diretor é que uma cidade deve ser organizada como um direito humano e não um recurso econômico. A cidade não é como diamantes ou tecnologia informática. Para o governo, esse tipo de desenvolvimento empreserial é de importância secundária. Em vez disso, a função principal de gestão da cidade deve ser a alocação e regulação do espaço como um gesto de contribuir para o bem comum. Dado o fato de que a maioria de nós vive em cidades e que esta tendência deve se intensificar, todos nós temos algo em jogo no tocante ao que vai acontece em São Paulo.