Sempre que me perguntam sobre as eleições no Brasil, as pessoas esperam comentários sobre a disputa presidencial. É a única eleição em que posso participar como brasileiro vivendo no exterior. Mas é apenas uma de cinco escolhas que os eleitores têm que enfrentar. A cada quatro anos os brasileiros votam para governador, deputado estadual, um terço do senado e deputado federal. Assim tem sido nos últimos 26 anos, desde o fim da longa transição para a democracia que começou em 1974 com uma resalva do general em questão de que ela seria “lenta, gradual e segura.”
A chave para a segurança de que falava o general e a eleição do congresso nacional. Para entender claramente o que estou dizendo, é preciso ter em mente que, ainda que a eleição em dois turnos garanta que o presidente eleito tenha sempre mais de 50% dos votos válidos, nenhum presidente eleito desde 1990 teve mais que cem deputados de seu partido no congresso. Por causa disso todos os presidentes desde então governaram com base em uma complicada rede de alianças heterogêneas. As limitações relativas dos seis governos eleitos desde 1990, além das tendências ideológicas de cada um, se explicam em grande medida como resultado de um maioria no congresso que é sempre – independente de tendências à corrupção ou não – muito conservadora.
Consideremos, por exemplo, duas bancadas identificadas com causas conservadoras. Os ruralistas ou a bancada do agro-negócio (uma embalagem supostamente moderna para os descendentes das velhas oligarquias latifundiárias que já comandaram o país) e os evangélicos conservadores juntos tinham pelo menos 235 votos no congresso. Cálculos diferentes dão à Bancada Ruralista entre 159 e 227 deputados e onze senadores. Com respeito à Bancada Evangélica as avaliações variam entre 73 e 66 membros no congresso e três senadores. Outras bancadas conservadoras que eventualmente aparecem com destaque em votações e em comissões no congresso são a Bancada da Bala com 11 membros que defendem os interesses da indústria de armas e a bancada da Bola com 7 membros que defendem os interesses das federações de futebol e dos clubes. Esses votos, principalmente os que vêm das primeiras duas bancadas mencionadas, são a garantia de que o governo federal, não importa quem ganhe as eleições, fará muito pouco de substancial sobre reforma agrária, desmatamento e os direitos dos povos indígenas, das mulheres e da comunidade LGBT.
O poder político da bancada ruralista tem sua fonte no grande crescimento do Mercado internacional de commodities que ocasionou uma rápida expansão pelo planalto central e o norte do país de latifúndios produtores de soja e cana-de-açúcar. Nas últimas eleições os evangélicos, com uma exceção significativa,[1] aumentam sua presença no congresso a cada eleição em sintonia com o crescimento dos protestantes que foram de 9% em 1990 para 22,22% da população brasileira, totalizando 42.3 milhões. Esse não é um grupo tão homogêneo como muita gente pensa: os evangélicos são apenas 65% dos protestantes e estão divididos em vários grupos antagônicos – conflitos internos dividem até mesmo a Assembléia de Deus, igreja mais poderosa com 8.5 milhões de membros por todo o país. Todos os evangélicos parecem estar de acordo, entretanto, em imaginar os direitos reprodutivos das mulheres e o casamento e adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo uma ameaça às fundações da sociedade.
Ainda que quase a metade do congresso seja eleita com base nessas plataformas, uma proximidade excessiva com causas identificadas com os dois grupos pode prejudicar uma campanha por um cargo executivo. Políticos ruralistas encaram forte rejeição fora dos seus redutos políticos e têm péssima reputação por combaterem tentativas de reprimir a escravidão ou o desmatamento enquanto preconceitos religiosos e de classe contra os evangélicos pioram por causa da rejeição do ativismo conservador moralista reduzem em muito seu apelo além do seu eleitorado. Está aí uma boa maneira de tentar decifrar um dos mistérios da campanha presidencial deste ano.
Após uma promessa de novidade, pela sexta vez consecutiva os dois candidatos com maior número de votos foram os do PT e do PSDB. Desapontamento acompanhou o frenesi sobre Marina Silva, que começou essa campanha como vice-presidente na chapa de Eduardo Campos até que ele morresse num acidente de avião em julho. Marina fez uma campanha mais curta e com menos tempo de televisão – desde meados de agosto reserve-se uma hora do horário nobre de todas as rádios e canais de televisão para propaganda política dividida de acordo com o número e o tamanho dos partidos de cada coligação. É inegável, entretanto, que após uma ascenção meteórica nas pesquisas de opinião, Marina Silva frustrou aqueles que pensaram que ela poderia mudar o curso das eleições ao se mostrar incapaz de atrair o eleitorado mais conservador sem alienar sua base de apoio formada por eleitores de esquerda insatisfeitos com os rumos tomados pelo PT, partido no qual Marina fez a maior parte da sua carreira. O começo do seu fracasso pode ter sido o momento em que Marina Silva voltou atrás em compromissos de campanha pelo apoio ao casamento entre homossexuais após ter sido severamente advertida pelo pastor pastor Silas Malafaia em uma série de tweets. Marina terminou em terceiro lugar, mais ou menos com o mesmo número de votos. Silas Malafaia é um televangelista à moda estadounidense que luta pelo controle da poderosa Assembléia de Deus, organização em sua maior parte controlada pelo pastor José Wellington Bezerra da Costa de 77 anos. O candidato apoiado oficialmente pela Assembléia de Deus era o pastor Everaldo Pereira, que recebeu apenas 0.75% do voto.
A maioria dos políticos brasileiros hoje em dia faz um jogo cínico de mensagens mais ou menos indiretas que tentam agradar ao eleitorado religioso sem parecer demasiadamente próximo dele. A força desse eleitorado entre a classe trabalhadora explica o incomum número de graças ao senhor que, por exemplo, aparecem no final dos debates presidenciais. Alianças em manobras de bastidores praticamente garantem que os ruralistas darão apoio a qualquer um que ganhar as eleições e serão bem recompensados por isso. Uma proximidade excessiva com esses grupos durante a campanha pode prejudicar as chances de um candidato a presidência, governo estadual, ou mesmo ao senado, mas, ao fim do ciclo eleitoral, os mais de 235 votos no congress estarão aguardando o novo presidente na mesa de negociações.
Estou completamente em desacordo com o clichê que diz que politicos são todos “farinha do mesmo saco”. Os cinco presidents eleitos democraticamente [Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Roussef] diferem muito em estilo e substância. A inflação foi de 80% ao mês em 1990 para 6% ao ano em 2014. O salário mínimo estava em torno de $100 nos anos 90 e agora está acima de $300, o que significa que um dos países mais desiguais do mundo finalmente dispôs-se a fazer algo para reverter a perversa concentração de renda que foi imposta desde o golpe militar de 1964. Mas a natureza das conquistas e dos limites desses governos só pode ser compreendida levando-se em conta esse pequeno imenso detalhe que raramente figura nas conversas entre brasileiros: todos eles lidaram com um congresso reacionário, alguns a seu favor, outros em seu detrimento. Esse sistema político parece ter exaurido sua capacidade de produzir reformas substanciais e isso talvez explique a explosão de insatisfação difusa que tomou as ruas de todas as cidades brasileiras em junho de 2013.
Discordo de um outro clichê que diz que o que quer que esteja acontecendo “só poderia acontecer no Brasil”. As crises causadas pela aparente incapacidade dos sistemas de democracia representativa de apresentar alternativas reais aos mantras do capitalismo financeiro são antes a regra do que a exceção no século XXI. Não é difícil perceber o contraste gritante entre campanhas eleitorais ferozes entre grupos políticos polarizados e programas de governo que oferecem mais ou menos a mesma coisa com pequenas diferenças de ênfase. A vontade de projetar antagonismo entre os três candidatos com chances e vitória este ano não pode obscurecer o fato de que os três tentaram seguir scripts cuidadosamente escritos por profissionais de marketing que “vendem” um candidato progressista hoje e um candidato conservador amanhã. Faz-se muito para disfarçar diferenças entre propostas para a educação e saúde assim como as continuidades em políticas contra a fome e a pobreza assim como políticas econômicas que se baseiam numa aceitação complacente do status quo capitalista. Enquanto a mídia insiste que a corrupção é uma questão de políticos se apropriando de fundos públicos, o sistema político torna-se universalmente corrupto por causa de interesses econômicos que mantém controle do legislativo e do executivo nas esferas federal, estadual e municipal. O sistema se domestica cada vez mais e as escolhas se resumem e versões ligeiramente diferentes do mesmo. O mal estar é palpável e cresce a possibilidade da aparição política de algum Berlusconi ou o retorno da ortodoxia neoliberal ao poder.
A angústia que perpassou grande parte do ciclo eleitoral deste ano pode resumir-se em um dos mais populares slogans das manifestações de 2013: “Contra tudo o que está aí”. Faz-se necessária uma rápida retrospectiva dos eventos do ano passado. Os protestos organizados por um grupo ousado de jovens ativistas de São Paulo contra o alto-custo e ineficiência do transporte público ganharam uma nova dimensão com a brutalidade policial documentada pela mídia tradicional e pelas mídias sociais. De repente milhões se juntaram a protestos organizados de forma difusa por grupos de iam da extrema esquerda anarquista aos conservadores dispostos a trazer de volta os militares ao poder. Grupos os mais variados criavam gritos de guerra contra a Copa do Mundo, contra a Rede Globo, contra a polícia, contra o deputado homofóbico Marco Feliciano, contra a presidenta Dilma Rousseff, contra autoridades estaduais ou municipais. Indivíduos isolados seguravam cartazes a favor de causas como a esterilização dos animais domésticos, “o exército de Jesus” ou o fim do controle às armas de fogo e dos pedágios. Os únicos slogans aceitos de forma mais ou menos universal eram aqueles que primavam por serem vagos como “Vem pra rua” ou anti-política como “Sem partido”. Mais tarde à noite a costumeira brutalidade policial encontrava resistência violenta. Especialistas na mídia tentavam freneticamente dar um sentido definitivo a agitação social generalizada e a classe política saiu da sua complacência habitual para tentar aplacar a ira pública. Em um dos seus momentos mais patéticos, o comentarista Arnaldo Jabor apareceu no horário nobre criticando asperamente os manifestantes caracterizados como piralhos mimados de classe média e, poucos dias depois, celebrando os mesmos como grandes patriotas capazes de mudra o país. A mídia se indignava seletivamente com a violência quando esta atingia um dos seus, primeiro pela ação da polícia e depois dos manifestantes. Um discurso se construiu em torno de uma separação clara entre pequenos grupos organizados de vândalos mal-intencionados dispostos a tudo para subverter a ordem e a boa gente que era maioria nas manifestações.
Aumentos de passagens foram cancelados e em algumas cidades preços foram reduzidos; um político condenado por corrupção foi mandado para a prisão. Após um longo silêncio e relativa cumplicidade com as medidas repressivas tomadas pelos governos estaduais, o governo federal decidiu propor uma completa reforma do sistema político a ser proposta por uma constituinte eleita especificamente para esse propósito. Reformistas ultrajados de repente se transformaram em pragmáticos cautelosos e vice-versa e nada de substancial foi feito. Até agora parece que o único resultado palpável dos protestos “contra tudo o que está aí” não foi um Berlusconi brasileiro, mas um congresso ainda mais reacionário: o equivalente de atirar gasolina para tentar apagar o fogo.
Footnotes
- As eleições de 2006 tiveram resultados devastadores para a bancada evangélica. Só 17 dos 70 deputados eleitos se reelegeram e a bancada foi reduzida a 30 membros. A polêmica Igreja Universal do Reino de Deusfoi particularmente atingida, caindo de 22 para apenas 4 representantes. O resultado parece negar o preconceito de que o voto evangélico seja completamente acrítico.