Notas introdutórias
O conceito de viagem, de acordo com Caren Kaplan, Questions of Travel: Postmodern Discourses of Displacement (1996), se transformou em uma referência a movimentos populacionais, bem como em uma metaforização de processos de questionamento identitários essencializados. Nesse sentido, Kaplan parte do pressuposto de que a subjetividade moderna sempre valorizou a mobilidade e de que, se a viagem foi tão central para a constituição desta subjetividade, uma análise do deslocamento deveria se tornar uma prioridade para o discurso crítico da contemporaneidade (32). Tomando como pressuposto esta necessidade crítica, este trabalho tem como objetivo discutir as implicações do deslocamento transnacional no contexto da literatura brasileira contemporânea. Mais especificamente, a base para esta discussão está estruturada em dois romances: Viagem ao México (1995), de Silviano Santiago (1936 – ) e Berkeley em Bellagio (2002), de João Gilberto Noll (1946 – ).
Apesar de suas diferenças específicas, esses dois romances constituem a metáfora do deslocamento como um gesto de confrontamento de formações autoritárias, de identidade cultural e de sistema político. Em Silviano Santiago, o deslocamento aparece como um mecanismo de produção de conhecimento histórico sobre a formação cultural latino-americana. Nesse sentido, Viagem ao México funciona como revelador dos modos de resistência, assimilação e transformação do eu e do outro[1]. Esta recuperação histórica da formação discursiva latino-americana na escrita de Silviano Santiago constitui, portanto, uma representação do debate pós-colonial no contexto da América Latina, trazendo à tona uma dimensão teórica que pode ser considerada metanarrativa, a partir da nomenclatura de Linda Hutcheon (1988). Viagem ao México realiza uma discussão sutil e astuciosa das tensões em torno do projeto civilizatório Ocidental diante do desafio do encontro entre o euporeu e o latino-americano, bem dos próprios latino-americanos entre si.
No caso de João Gilberto Noll, a metáfora do deslocamento funciona como a representação de uma viagem aos processos subjetivos que constituem seus personagens, mas sem a dimensão histórica construída por Silviano Santiago em Viagem ao México. A viagem rumo ao espaço do outro torna-se o desencadeador de um processo de auto-análise, a partir do reconhecimento da diferença que constitui toda identidade. A viagem em João Gilberto Noll é feita para conhecer o outro, que está fora do sujeito, mas que, em certo sentido, está nele próprio (Kristeva, 1991; Young, 2001: 425) [2].
Apesar dos traços distintivos presentes nesses dois romances, um elemento unifica essas duas performances representativas do deslocamento: dramatiza-se nestes romances o percurso de constituição dos sujeitos na/pela linguagem. É fundamental assinalar que tais gestos representativos revelam também uma reflexão sobre o próprio ato de narrar a viagem e o encontro com o “novo” e com a diferença. Esses dois romances brasileiros contemporâneos constituem suas especificidades, enquanto discurso literário, conscientes das implicações do eu na construção do outro e em busca de formações culturais menos autoritárias.[3]
I. Diálogos críticos com os modos de produção do outro
Viagem ao México (1995) é um dos romances menos conhecidos e estudados do escritor mineiro Silviano Santiago. O romance narra a viagem do poeta, ator, e dramaturgo francês Antonin Artaud (1896 – 1948), de Paris ao México, em busca de inspiração para o seu projeto de renovação do teatro francês. Nas primeiras páginas do livro, o leitor se depara com um sujeito da enunciação descrevendo um personagem envolto em um estado de decepção frente a sua realidade imediata. A França pós-primeira guerra mundial transparece nessas linhas iniciais do livro por meio de uma crítica da produção intelectual e artística do momento – especialmente o cinema e o teatro. Aponta-se também neste início meta-narrativo do romance para o debate sobre a função da arte na sociedade: arte como forma de propaganda ideológica versus arte como um processo de desautomatização da linguagem, nos termos em que a arte de vanguarda do início do século XX se pronunciava.
A ênfase sobre as implicações do deslocamento e a revelação da curiosidade em relação à cultura do outro é uma constante dentro da narrativa. A primeira referência ao título do livro acontece quando o narrador faz alusão ao desejo de Antonin Artaud de fazer uma viagem, de dar início a um processo de distanciamento de seu próprio país – daquele espaço sociocultural que lhe fora “destinado como pátria” (42), mas que, ao mesmo tempo, o “acolhera como um mendigo” (42). É talvez por causa desta sensação de desamparo que a necessidade do outro surge, revelada por meio da urgência da própria viagem, cujo intuito seria a chegada a outras terras, a possibilidade de “conhecer outras gentes” (42). Mas há também uma certa decepção pelo fato deste outro, que Artaud vai encontrando no decorrer da sua viagem, não ser tão diferente, pois “estes estrangeiros guardam muito da palatável e indesejada familiaridade europeia” (42). Esta passagem põe em debate a própria identidade latino-americana. Estou pensando aqui nas duas posições antagônicas que assinalam que uma parte da cultura latino-americana nada mais seria do que cópias corrompidas da cultura europeia. O outro posicionamento epistemológico entende a cultura latino-americana como um entre-lugar discursivo, um espaço em que as práticas culturais europeias teriam um locus de atuação, mas que tais práticas sofreriam as transformações e adaptações fornecidas pelas dinâmicas culturais locais (Santiago, 1978). É exatamente sobre este debate que Viagem ao México realiza o seu gesto discursivo.
Para efetivar este debate, em alguns momentos é possível perceber os signos representativos da viagem, do movimento, do encontro e suas implicações. Por este motivo, a enunciação do narrador estabelece uma diferença entre a constituição ontológica do marinheiro e do turista. O marinheiro, “amante do perigo” (43), estaria exposto ao “desenrolar do tempo” (43), inserido no contexto da “movência do corpo pelo espaço” (43). A identidade do marinheiro, nestes termos, não existiria mais. Ela teria sido substituída por um outro tipo de performance identitária: a do turista – aquele que viaja com tempo e espaço predeterminado. A viagem, neste tipo de performance, seria “uma vivência nos espaços repetitivos e monótonos do lazer” (43).
A performance do turista de maneira alguma é a de Artaud. A viagem que o Artaud ficcionalizado realiza, num “tempo-espaço comprimido” (43), é resignificada a partir de uma analogia com a “massa de pão fermentada” (43). A massa-sujeito “continua a ser o que era, mesmo depois de inchada e passar pela metamorfose do forno” (43). O forno funciona aqui como um símbolo de um espaço que refaz a formação cultural anterior do sujeito. O produto desta viagem transformativa, “depois de perdido a força extensiva do fermento” (43), revela-se a partir do ganho de um outro tipo de substancialidade: a massa ganha “a forma de um manjar dos deuses” (43). Este é um tipo de discurso que, em certa medida, alinha-se à representação da viagem como um mecanismo de autoconhecimento e de transformação pessoal que é muito enfatizado também por João Gilberto Noll, em Berkeley em Bellagio. Este seria um ponto de intersecção entre os dois modos de representação da viagem dos dois escritores aqui discutidos, resguardadas as diferenciações específicas que os constitui.
“Ser peregrino do meu próprio destino” (45) – eis o mote do viajante aventureiro (nômade, vagabundo). “A terra mexicana” – espaço do outro por excelência – configura-se numa espécie de mapa que guiaria o sujeito rumo ao cumprimento de seu destino. Que destino seria este? O posicionamento ético do intelectual no contexto sócio-político da primeira metade do século XX. No seu espaço de origem, o Artaud reconstituído por Silviano Santiago vivencia as dificuldades do intelectual que necessita do “dinheiro alheio” para fugir da situação de “eterno passageiro de ônibus”, ou deixar de ser um sujeito andarilho, a “carregar de um lado para outro (…) o peso dos ossos, da carne, das vísceras” (45). Para o tipo de produção cultural que o teatro de Artaud tem a oferecer para a sociedade burguesa francesa, a ideia de sucesso material é uma variável difícil de atingir. O seu teatro não encontra uma recepção de massa que possa transformar as suas condições concretas de vida. O artista vive, desse modo, o dilema de produzir um teatro crítico da sociedade burguesa às custas do financiamento desta mesma sociedade. No contexto da narrativa criada em Berkeley em Bellagio, como se verá mais adiante, o dilema dos modos de sobrevivência do viajante intelectual volta a ser tematizado, desta forma dentro de um ambiente econômico e cultural de início do século XXI e informado por questões relativas à globalização cultural e ao domínio do sistema capitalista como modelo econômico hegemônico dentro das sociedades ocidentais.
No caso de Viagem ao México, portanto, Silviano Santiago representa o debate político-ideológico que atormentou os artistas modernistas. A discussão em torno do papel social da arte promoveu a reformulação de projetos estéticos em função de valores éticos de cunho mais pragmático. Na primeira fase do projeto estético do Surrealismo, está implícita uma concepção de arte e sobre o papel do artista que colocava-o em franca oposição à arte burguesa, esta última baseada na transparência mimética da realidade, e colocando sobre os ombros da arte a responsabilidade de eleição do espírito humano, na melhor tradição platônica ocidental. Atacando diretamente a linguagem na qual se formatava tal projeto estético-ético, os críticos vanguardistas pressupunham que o modo de confrontar esta cosmologia estaria na desarticulação do seu mecanismo de produção: a própria linguagem que constrói arte e conhecimento. A linguagem é reestruturada para que, a partir de uma movimento de autoconsciência, o homem passe a ter mais compreensão dos processos envolvidos na enunciação dos discursos de saber. Este é um projeto de revelação dos mecanismos internos de articulação da linguagem, por intermédio da desautomatização do seu uso. Havia neste projeto, portanto, uma necessidade de criação de gestos culturais e artísticos que tomassem o interlocutor de ‘surpresa’ e o colocassem em ação de reconstituição das possibilidades de sentido – que já não estariam mais disponíveis a priori. Aciona-se, dessa forma, a responsabilidade do interlocutor na construção de um possível sistema de referência que dê sentido a ‘sua’ própria leitura do mundo. É comum, neste contexto, a sensação de se estar perdido em meio a um ambiente que só fornece estímulos, os mais diversos, mas que não proporciona mais uma narrativa teleológica.
Este é o dilema do artista de vanguarda situado numa linha fronteiriça entre a liberdade do indivíduo e os constrangimentos simbólicos impostos pela sociedade. O seu gesto estético, seu posicionamento como agente social e/ou artista está informado pela angústia do pertencimento. A sensibilidade do artista de vanguarda não abre mão do contato social, pois é desta relação que ele pode contactar o outro; mas, paradoxalmente, este encontro relacional gera expectativas conflitantes em ambas as partes. Tomando-se o teatro como metáfora, nos deparamos com o dilema da relação dialética entre o que está sendo representado (e como) e uma suposta audiência. Até que ponto a performance teatral pode romper com algum tipo de vínculo significativo (comunicativo) com a audiência? Qual o limite entre comunicar e não-comunicar dentro do jogo teatral? A discussão destas questões nos remetem para um domínio relativo à própria constituição da linguagem. O Artaud que Silviano representa teatralmente em sua ficção é um sujeito em busca de um outro verbo, ou melhor, um sujeito que viaja em busca de um modo de “comunicar” baseado no silenciamento do verbo escrito da História, e na tentativa de acionamento de um discurso, digamos, pré-simbólico, ou inconsciente.[4] Esta é uma viagem a um espaço semiótico, no qual os sentidos não estejam ainda estruturados; é um espaço no qual a audiência não seja uma passiva receptora de sentidos ‘caducados’, apresentados em novas roupagens para dar a impressão novidade. Talvez por isso, a viagem de Artaud-Silviano não seja tanto em função da revitalização da palavra estruturada linearmente, mas uma tentativa de resgate do poder significativo do próprio movimento, da imagem e do silêncio como potencialidades discursivas.
Viagem ao México representa, assim, uma aventura semiótica que não apresenta uma bússola ou um mapa. A liberdade, tanto para o autor, quanto para a audiência é um elemento crucial neste processo. Mas o estado de liberdade, como vieram a nos revelar os existencialistas, pode ser angustiante. É talvez pela constatação desta angústia que Sartre supõe que a liberdade seja – antes de tudo – responsabilidade. Uma responsabilidade sem um sentido moral estrito, mas entendida como a necessidade de participação ativa dos sujeitos em relação aos desafios éticos e estéticos com os quais ele irá se deparar neste encontro com o outro em sociedade. Esta liberdade também não significa qualquer falta de constrangimentos ou a impossibilidade de realizar concessões – na falta destes elementos, a liberdade ganharia um aspecto egocêntrico (senão, egoísta), oposto ao projeto sartreano. O Artaud de Silviano passa boa parte do seu percurso tendo de lidar com os constrangimentos econômicos e sociais por causa da ‘escolha’ que faz ao produzir um tipo de teatro de vinculação com o semiótico, dentro de uma sociedade burguesa que valoriza a dimensão produtiva do simbólico. A liberdade de que fala Sartre (e que Silviano dramatiza em Artaud) advém de uma capacidade do sujeito de articular os elementos disponíveis na sociedade com o propósito de construir um modo de compreensão que não mitifique a realidade, que não transforme os indivíduos e seus projetos em commodities, e que desarticule a engrenagem de qualquer sistema de automatização do sujeito e de suas práticas.
II. Viagem ao centro do universo pessoal
Berkeley em Bellagio é um dos romances mais importantes do escritor gaúcho João Gilberto Noll. Lançado em 2002, o romance chegou a ser finalista do Prêmio Portugal/Telecom e, juntamente com o anterior Bandoleiro (1985), e o posterior Lorde (2004), constitui uma espécie de trilogia que tematiza o deslocamento dentro do espaço cultural das Américas e as implicações epistemológicas e políticas destes escontros. Berkeley em Bellagio narra a história de um escritor brasileiro convidado para passar uma emporada na Universidade de Berkeley, na Califória, como professor de literatura brasileira. Durante este período como professor, o narrador precisa também escrever um romance, como parte das responsabilidades assumidas com as instituições que patrocinaram a sua viagem. Em sua passagem por Bellagio, na Itália, o narrador dá continuidade ao processo andarilho e desenraizado que alimentará uma escrita informada por impressões subjetivas da experiência de deslocamento.
A metaforização da viagem em João Gilberto Noll funciona como a representação de um movimento de descoberta existencial, no qual o sujeito tem como projeto o ‘descobrimento’ de si mesmo (em sua dimensão filosófico-existencial). Por este motivo, sua prosa apresenta um tom e uma estrutura textual que revela uma subjetividade em busca de auto-consciência. Não é à toa que em boa parte da produção literária de Noll o elemento auto-biográfico, disfarçado, seja um fator fundamental. O seu texto é construído na superfície da pele do próprio enunciador, ou seja, a fronteira entre o narrador e a experiência existencial do autor é intencionalmente fraturada. Em Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004), por exemplo, a narrativa nasce a partir de fatos reais acontecidos na vida do escritor, mas que passam a ser ficcionalizados. Este processo de ficcionalização dos eventos não se dá por meio da valorização dos fatos exteriores, mas constitui-se no limite entre os discursos literário e filosófico, na medida em que a viagem ao centro do universo pessoal é desencadeadora de uma teorização sobre o próprio self. Como afirma James Clifford (1989) relativamente ao termo grego theorein: “The Greek term theorein: a practice of travel and observation. [...] Theory is a product of displacement, comparison, a certain distance. To theorize, one leaves home” (1)[5]. É o deslocamento espacial que desencadeia o processo de reflexão que percebemos na obra de Noll. Por esse motivo, seus narradores parecem mais interessados em teorizar sobre si mesmos do que construir narrativas explicativas sobre o outro, a não ser que este outro represente um domínio inconsciente do próprio sujeito da enunciação. Mesmo que em alguns momentos o narrador teça comentários sobre uma exterioridade de uma topologia espacial e cultural, tais comentários são imediatamente confrontados a um gesto auto-reflexivo de discussão das próprias motivações que constituiram tais enunciações. Se a viagem é geradora de novos posicionamentos epistemológicos, cabe perguntar aqui: Que tipo de conhecimento é possível produzir a partir do encontro com o diferente? Ou mais: em se tratando das formas de aquisição/produção do conhecimento, como colocar a questão sobre os modos através dos quais conhecemos? Estas não são problemáticas articuladas apenas por Noll, elas aparecem também na escrita de Silviano Santiago.
O componente fundamental para se esboçar qualquer tentativa de discussão das questões apontadas acima é a própria linguagem, que passa a ser dramatizada neste processo de construção/produção de conhecimento. Uma das primeiras dificuldades com que este sujeito em viagem se depara é com a própria língua: a falta de habilidade lingüística para se adaptar ao novo espaço, a diversidade de códigos culturais, e até mesmo as dúvidas existências do personagem principal, etc. Esses componentes percorrem toda a escrita desta viagem e fornecem um quadro para a reflexão sobre o projeto ético e estético do narrador. O tipo de dramatização que o narrador-nômade reconstrói (pelo menos nas obras em questão) funciona ao mesmo tempo como uma metáfora, em um contexto de deslocamentos humanos em que os sujeitos deslocados têm pouco ou quase nenhum controle sobre as suas escolhas: a impressão que se tem é que tais sujeitos são escolhidos, ou submetidos a um processo migratório definido pelas dificuldades em seus espaços de origem e pelas possíveis oportunidades no novo lugar de destino, ou pela constituição formal que seus desejos ganharam. As dificuldades que estão presentes na representação do deslocamento para o espaço do outro, do não familiar, em Berkeley em Bellagio são também de ordem econômica.[6]
As atribulações da viagem para os sujeitos “sem altas formações acadêmicas” (16), desempregados e “sem endereço fixo” (16) não se iniciam somente com a chegada no novo espaço, elas começam no momento mesmo da autorização para a viagem. A ‘odisséia’ do sujeito moderno – pelo menos desses sujeitos dos países em situação periférica no contexto global – exige o enfretamento de atribulações advindas dos mecanismos de controle migratório impostos pelos países mais desenvolvidos. Do lado de quem tenta iniciar a viagem, ficam as marcas de um processo de autenticação: é preciso se provar e preencher os requisitos necessários. Nos primeiros momentos do drama encenado em Berkeley em Bellagio, o narrador se apresenta como um sujeito com nenhuma ou muito pouca disposição para enfrentar o processo de aprendizagem do novo, revelando a dificuldade de construir um aparato adaptativo para a vida neste novo espaço.
A dificuldade com a aquisição de uma nova língua(gem) chega a se transformar numa paralisia de quem “se cansava antes da hora”, ou de quem “parecia estagnado desde que viera para um país do qual não falava a língua” (12). O fato de, no seu trabalho, o narrador não necessitar interagir com seu alunos em uma língua estrangeira (o narrador está trabalhando como professor de cultura brasileira em Berkeley, CA) dá-lhe um mínimo de possibilidade de interação, mas sem o conhecimento do código lingüístico e cultural do outro para mediar as conversas mais informais e os conhecimentos pessoais, ele acaba “mantendo uma distância gentil de seus alunos” (12). É interessante notar que esta sensação de isolamento, de não pertencimento e paralisia da vontade não é privilégio somente do sujeito deslocado espacialmente. Mesmo alguns alunos, falantes nativos da língua e conhecedores das práticas locais, também são representados como desconectados de vínculos mais profundos uns com os outros ou com a própria vida: “ninguém no fundo dava a impressão de estar em gozo com a vida” (12).
Por este motivo, o narrador-autor faz uma análise crítica em relação ao desejo que mobiliza tais alunos em seu curso, bem como apresenta uma consciência bastante cética em relação à sua missão de professor de cultura brasileira e do impacto desse ensino em pessoas de cultura e realidade tão distintas. O ceticismo da sua percepção está ancorado na incompreensão sobre a real motivação e interesse dos alunos em relação a uma realidade tão diferente, e que se efetua em torno do contato com aqueles “quadros de miséria [da realidade brasileira expressa nos materiais que ele utilizava em suas aulas] afastados de seus cotidianos principescos” (19). O narrador está colocando em discussão os limites do próprio processo de compreensão: o que significa compreender/encontrar o outro? Na sua visão cética, a relação de sujeitos tão diferentes, no contexto acima apresentado, não passaria de um jogo de sedução e de simulação, cujo objetivo está além – ou aquém – da possibilidade de um conhecimento empático do outro (e principalmente de uma tomada de posição para a transformação dos mesmo quadros de miséria testemunhados no curso). A partir da visão de mundo impressa na voz do narrador de Berkeley em Bellagio poderíamos concluir que a complexidade do mundo globalizado deixaria os sujeitos inseridos num processo de impotência em relação a uma possível mudança no quadro de miséria global ou – no mais das vezes também – inseridos numa rede de relações de poder na qual todos participam e contribuem para a sua manutenção – inclusive o próprio narrador.
O drama do enfrentamento do cotidiano – e a sua negação, por intermédio da viagem – é um aspecto recorrente para os personagens de Noll. A “prática do convívio” (10) com outras pessoas, a existência em torno de um “endereço seguro” (10) são situações que ao mesmo tempo que atraem, também assustam. A atração poderia ser perfeitamente entendida pelo viés da necessidade do ser humano de formar relações e pela necessidade de proteção – instintos de sobrevivência. A repulsa poderia advir daquela sensação de exílio, de não pertencimento que poderia se desenvolver e ganhar força com o deslocamento geográfico, fator que forçaria o indivíduo a sentir-se ainda mais estranho em relação ao ambiente que o cerca. Para Said (1994), a semente desta subjetividade já estaria presente no indivíduo desde antes do deslocamento geográfico. Said nos fala de que provavelmente o intelectual exilado tenha sido desde sempre este sujeito afastado de um imaginário mainstream em seu próprio país de origem. Nesse sentido, uma das performances visíveis do intelectual na sociedade capitalista pós-industrial seria o do outsider. Noll representa um sujeito que anda à margem das situações que preenchem o cotidiano da maioria das pessoas. Seus narradores são andarilhos nômades, sem ponto fixo de partida ou de chegada.
Esse comportamento andarilho proporciona à vida uma “aparência” de liberdade, cujo paradoxo é a produção também de uma sensação de impotência. Este sentimento talvez seja derivado do fato de estes sujeitos não apresentarem vínculos significativos com a vida. A vontade de poder, pulsão fundamental da existência produtiva, aparece nessas obras enfraquecida. A viagem, nesse sentido, se coloca como uma tentativa de realimentar esta debilitada vontade de poder. O deslocamento em viagem abriria novamente (ou imporia, já que a vontade se apresenta tão indolente) um certo compromisso, algum tipo de vínculo com algo ou com alguém. A viagem passaria a ter a função de proporcionar pequenos projetos de engajamento, desencadeadores de um produto: neste caso o livro – mas com um ‘dizer’ pouco e diminuído, registro dessa aventura escassa, algumas vezes lírico, muitas vezes cético, outras tantas vezes irônico.
Entretanto, a vontade não está completamente desprovida de força. Em alguns momentos surgem projetos para além da rememoração de acontecimentos que geram a escrita de seus livros. É possível testemunhar um sujeito que se esforça para construir um engajamento ativo e prático com o mundo. É nesses momentos que vemos surgir a consciência de um sujeito que revela com clareza que “não adiantava se lembrar…precisava mesmo era ir à ação” (11). Mas a ação que este sujeito tenta efetuar tem curto fôlego. Seu projeto de revitalização da vontade e da ação está diretamente relacionado com a sua própria escrita – coisa de raro interesse: “testemunhar nessa língua a todos que pudessem se interessar pela sua vida. Quase ninguém naquela terra, era verdade”. (12) O espaço do outro, lugar atual do itinerário volátil deste sujeito, não proporciona a estabilidade necessária para o enraizamento de um projeto de existência de produção em massa. Não há, portanto, o estímulo do reconhecimento da experiência cultural idêntica capaz de despertar o interesse pelo que este sujeito teria a oferecer a partir da narrativa de sua experiência pessoal.
O próprio João Gilberto Noll, ao falar sobre Berkeley em Bellagio, faz referência ao fato de que seus personagens são seres contemplativos e que a sua narrativa busca revelar o interior de indivíduos que preferem a contemplação à ação. Seus personagens são também inadequados para um mundo que acelera cada vez mais o cotidiano. Nesse sentido, o livro forma aquilo que Noll mesmo chamou de:
(…) uma reflexão sobre o nosso tempo. Eu não estava interessado em fazer uma crônica a respeito dos costumes e da cultura de Berkeley ou Bellagio. Minha preocupação era falar sobre o brasileiro na condição de estrangeiro e, a partir disso, abordar a mundialização. (Zaccaria, 2).
É nesse processo de representação da contemplação que nos deparamos com um sujeito que se põe a “olhar mais para dentro” em busca de sentimentos que pudessem provocar “a noção mais antiquada de uma comunidade”. Comunidade que, se observada a partir da ótica de Zygmund Bauman (2003), fragmentou-se dentro do projeto de modernidade das sociedades pós-industriais, e que, por isso mesmo, deixou suas marcas na formação dos sujeitos contemporâneos. Paradoxalmente, diante desta fragmentação dos vínculos comunitários tradicionais, há também um desejo de restauração de novos laços afetivos. A escrita que revela tal desejo, portanto, se move em ritmo quase nostálgico a fim de “reacender a atmosfera idealizada da infância” (22). A memória passa a ser a responsável pela constituição de um suposto conhecimento de si que não abre mão do único elemento concreto possível, não mais de ser reconstituído, mas sim reinterpretado: os traços fragmentados do passado. Este é um vasculhamento da memória – viagem ao interior do sujeito – no sentido de refazer o percurso reconstitutivo dos momentos de sínteses dos desejos que o constituirá, criando identificações que estiveram coladas às “imagens de filmes e gravuras” (22) de uma infância irrecuperável. O sujeito está, portanto, numa viagem em busca de uma identidade perdida na poeira do tempo.
O que traz o sujeito como resultado dessa viagem interior? O que é recolhido nesta viagem? Qual o seu lucro ou a moeda de troca que faça valer a viagem e pague seus custos? O que o sujeito traz consigo como souvenir desta viagem não tem valor de troca. Ao contrário, são memórias de eventos e lembranças que muitos fazem um exercício racional para reprimi-las. No caso do narrador de Berkeley em Bellagio, o que vem à superfície da consciência são fragmentos de eventos marcados pela dor e pelo castigo, como se percebe numa passagem que rememora a adolescência do narrador:
Ao ser pego abraçado a um colega no banheiro, abocanhando a carne de seus lábios, alisando seus cabelos ondulados, ele era o culpado – já o colega, não, nem tanto; ele sim, apontado como o que desviava o desejo de outros jovens das “metas proliferantes da espécie” (23).
O resíduo dessa memória é o sentimento de dor provocado pelas formas de repressão e autoritarismo da cultura patriarcal: a dúvida presente sobre aquilo que lhe fora imposto como erro, mas que “ainda não tivera tempo de notar dentro de si” (23). O ‘souvenir’ da viagem só pode ter algum valor para o próprio sujeito, quando transformado em nova forma de percepção do passado e como forma de produção de um novo conhecimento de si – uma nova concepção (gestação) de sujeito. Para nós, leitores, esse quadro só pode ter algum valor como uma espécie de ‘pedagogia’ filosófica do ser, nos termos em que Deleuze e Guatarri entendem o processo de reflexão filosófica: “pedagogy of the concept” em oposição a um tipo de conhecimento estruturado em torno de uma “encyclopedia of the concept”. (Deleuze e Guatarri: 12).
III. Considerações Finais
Uma das rotas narrativas da ficção contemporânea brasileira, e em muitos casos também a latino-americana, tem tematizado a viagem como metáfora das mudanças que ocorrem no processo de constituição do sujeito em um mundo globalizado. Neste artigo, os romances Viagem ao México, de Silviano Santiago e Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll foram discutidos como dramatizações de um modelo de deslocamento tanto físico como epistemológico. De acordo com Diaz-Zambrana (2005), o debate colocado pelas narrativas que tematizam a viagem e o deslocamento se constitui a partir da dificuldade que o sujeito contemporâneo encontra para definir as coordenadas e os valores que guiarão seus percursos em um mundo “pós-utópico” e globalizado. A viagem como motivo literário estaria fundamentada, portanto, na interação frustrada com o espaço circundante e na busca de novas formações identitárias para este sujeito contemporâneo. Nesse sentido, a expressão contemporânea da viagem radicalizaria o gesto de questionamento simbolizado pelo deslocamento e confrontaria os discursos hegemônicos constituidores das identidades individual e cultural (Diaz-Zambrana, 153). Seguindo esta mesma linha de raciocínio, os personagens de Noll e Santiago nos romances discutidos neste artigo representam exemplarmente esta sensação de desconforto propulsora do deslocamento.
As noções de espaço, de casa e de pertencimento articuladas nos dois romances são apresentadas de forma fragmentária, perdendo, portanto, a sua unidade ontológica e reificadora. O desaparecimento da noção arquetípica de casa, ainda segundo Diaz-Zambrana, ocorre nas narrativas contemporâneas por meio da implosão simbólica do eu, que sucumbe na crise de confrontação com o outro. Entretanto, apesar da fragilização do eu provocada pela perda da segurança, estes viajantes nômades continuam o seu périplo acidentado. Eles são configurados como personagens imigrantes, fugitivos, vagabundos, enfim, seres melancólicos que experimentam a distopia do mundo contemporâneo. (Diaz-Zambrana, 154).
No universo ficcional configurado por Viagem ao México e Berkeley em Bellagio, o deslocamento subjetivo desafia os limites das noções de identidade cultural até então constituídas para a existência dos personagens. Nesse sentido, a relação com o outro, descoberto no deslocamento, gera transformações, que segundo Julia Kristeva, em Strangers to ouservels (1991), produz angústia e resistência, porque força o sujeito a encarar sua própria condição de estrangeiro no espaço da linguagem que constitui o seu senso de identidade. Este predomínio de um percurso em busca de liberdade e novas formas de expressão que caracteriza o intinerário dos personagens dos romances discutidos constitui um modelo narrativo não teleológico, que não determina um fim pré-determinado para tal deslocamento. A pulsão que mobiliza tais personagens se revela pela vontade de aventura e pela esperança de constituição de uma rota cultural alternativa, desestereotipada e menos autoritária, na qual se possa compartilhar com outros – vagabundos leitores – os percalços desse caminho sem garantias que é o encontro com a diferença e com a própria literatura.
Footnotes
- O conceito de outro que tentarei articular neste trabalho tem uma dimensão psicanalítica e outra cultural. No sentido psicanalítico tem relação com o trabalho de Jacques Lacan (1901 – 1981) na medida em que este coloca esta categoria como a sombra do Sujeito, ou aquilo que fica silenciado ou suprimido para que se constitua um sujeito da enunciação. A dimensão cultural, dentro de um contexto de reflexão pós-colonial – mas também diretamente implicada com a anterior – será articulada a partir de Edward Said (1935 – 2003), na análise efetuada em Orientalismo (1978), na qual Said utiliza o conceito de Outro como uma categoria que funciona para revelar as implicações de um silenciamento cultural e político.
- Há ainda um outro viés de discussão dessas questões de deslocamentos transnacionais que podem ser explorados a partir também da obra de outro escritor Brasileiro contemporâneo Bernardo Carvavalho (1960 – ). Por limitação de espaço, neste trabalho não farei uma discussão da contribuição de Bernardo Carvalho para o tema, apenas assinalarei que nos romances de Bernardo Carvalho, Nove Noites (2003) e Mongólia (2004), a viagem não mais funciona como um mecanismo somente à disposição da construção de um projeto existencial individual. Ela resulta na elaboração de um suposto “registro etnográfico”, a servir como produção de conhecimento sobre práticas culturais diferenciadas. A viagem funciona ainda como ponto de articulação dos dilemas e conflitos envolvidos no processo de representação do outro.
- Estou fazendo uma distinção entre representação e performance da representação para marcar o gesto estético no processo histórico de constituição do romance moderno ocidental no qual uma consciência metaficcional passou a fazer parte da construção da própria narrativa. Do ponto de vista teórico, críticos como Linda Hutcheon, em sua obra A poetics of postmodernism: history, theory, fiction (1988), têm marcado esse modo autoconsciente da escrita como sendo um dos traços mais representativos de romances que ela denomina pós-modernos.
- Não é a toa que a viagem ao México de Arthaud tem como missão resgatar, num gesto quase arqueológico, o modus vivendi das culturas pré-colombianas. Nesse sentido, este é também um percurso inverso de silenciamento de uma História colonial e de constituição de um discurso pós-colonial, na medida em que busca dar “voz” e “vez” a formas apagadas pelo verbo escrito da História colonial. Somente por meio de uma outra linguagem (aquela que volta ao mítico e ao dramático, abandonando a linearidade racional do discurso verbal) é que se pode revelar este silenciamento do Outro. É a constituição desta linguagem que impõe à audiência novas estratégias de leitura e de engajamento epistemológico. O canal deste contacto passa pela “caixa preta” do teatro, capaz de fazer florescer o que fora suprimido pelo desejo de racionalização e estruturação do Real.
- O termo grego theorein: uma prática de viagem e observação. [...] Teoria é o produto do deslocamento, da comparação, e requer uma certa distância. Para teorizar, é preciso sair de casa. (Tradução minha).
- Nesta obra de João Gilberto Noll é possível também discutir a questão da necessidade da viagem do intelectual (ou de um tipo de intelectual), principalmente daqueles dos países menos desenvolvidos, de terem que viajar para se qualificar e a própria questão da falta de oportunidades de desenvolvimento de uma carreira intelectual em espaços que vivem a escassez de oportunidades e a dificuldade econômica. Em contexto de precariedade e falta, o investimento pessoal e financeiro em questões de ordem intelectual (que ganham a dimensão do supérfluo) ficam permeadas de dúvidas e condicionamentos que muitas vezes podem fugir ao arbítrio individual.
Works Cited
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