Abstract
A desigualdade social é considerada o maior problema estrutural do Brasil e exprime-se em múltiplos aspectos. Diferenciais nas condições de vida e saúde são historicamente evidenciadas entre grupos populacionais distintos. Propõe-se discutir aspectos da desigualdade social, equidade, vulnerabilidade e desigualdade em saúde sob a perspectiva da raça/cor da pele, compreendida como um fator determinante de iniquidade em saúde entre grupos étnico-raciais. As desigualdades sociais e situação de saúde no Brasil são históricas, de elevada magnitude e persistentes. Nesse contexto, proporcionar maior visibilidade aos abismos existentes entre as condições de vida das populações segundo a raça-cor da pele, investir em políticas públicas visando a garantia dos direitos fundamentais do ser humano representam a possibilidade de uma sociedade menos injusta e efetivamente democrática.
Temos uma sociedade desigual, que se adaptou a esse padrão de desigualdade e dele se serve e a partir dele se reproduz (THEODORO, 2008, p.81).
O Brasil é um país de contradições históricas, considerado a maior economia da América Latina que, paradoxalmente, abarca um gigantesco contingente de pobres, tem perpetuado a naturalização da pobreza e profundas desigualdades (THEODORO, 2008). Para Henriques (2001), a naturalização da desigualdade deriva de um acordo social excludente, que limita a inserção de direitos e oportunidades de determinados segmentos e reforça a cidadania para poucos.
A desigualdade brasileira perpassa o tecido social e tem raízes históricas assentadas no período da escravidão e no processo de transição para o regime de trabalho livre marcado pela exclusão, falta de proteção e políticas direcionadas à mão-de-obra recém-libertada. A população negra, excluída da terra e destinada ao subemprego, desemprego e a informalidade concentrou-se nos segmentos mais pobres reforçando a associação entre pobreza e cor da pele – dado que explica a nossa idiossincrasia e contrastes sociais (THEODORO, 2008).
No Brasil, ainda vigora o frequente argumento de que há o processo de preconceito e de discriminação, só que dirigido aos pobres e não aos negros, argumento que legitima, segundo Guimarães (2002, p. 67) o preconceito de classe. Logo, pode-se inferir que a legitimidade desse preconceito se ampara precisamente no fato de que a maioria dos pobres é negra, e de que a imagem do pobre no Brasil está associada à negritude – uma sólida e direta relação entre racismo, preconceito, discriminação e processo de naturalização da pobreza. Entre os negros, observam-se menores índices de mobilidade ascendente, e por outro lado, elevada exposição a maiores possibilidades de mobilidade descendente (JACCOUD, 2008).
No que tange a condições de vida e de saúde, negros nascem com peso inferior a brancos, apresentam maior probabilidade de morrer antes de completar um ano de idade, jovens negros morrem de forma violenta em maior percentual que jovens brancos, a população negra sofre com a pior qualidade no atendimento no sistema de saúde e vive menos do que a população branca (IPEA, 2007, p. 281).
Apesar das variações regionais, a pobreza e a miséria no Brasil são predominantemente negras (ZAMORA, 2012). Para Theodoro (2008, p. 81) “a problemática racial revela-se como a chave da naturalização da desigualdade”. Desse modo, a naturalização social da condição subalterna da população negra responde por melhorias restritas das condições de vida e oportunidades insuficientes para esse grupo. Os mecanismos raciais de discriminação atuam na ordem da distribuição do prestígio e privilégios sociais que influenciam na alocação de lugares e oportunidades e são reforçados pela própria composição racial da pobreza (JACCOUD, 2008).
Desse modo, os negros encontram-se nos níveis mais baixos da pirâmide social. A origem social é representada, em elevado grau, pela raça da pessoa, isto é, compõe-se como o principal determinante da reprodução da desigualdade social, acompanhada da discriminação racial. A probabilidade de um negro nascer pobre é expressivamente maior que a de um branco; somado a esse legado, o sistema educacional, canal de mobilidade ascendente, tende a reproduzir as mazelas das desigualdades de origem ao invés de contrapô-las (OSÓRIO, 2010).
Quanto pior a posição social, tanto pior a saúde. Esse dado denota a direta proporcionalidade entre a condição social e a situação de saúde, a invariância das desigualdades em saúde. A posição socioeconômica influencia tanto a exposição como a vulnerabilidade a fatores mediadores comportamentais, psicossociais e ambientais, de modo que pessoas pertencentes a estrato socioeconômico inferior são mais vulneráveis, mais expostas a eventos e condições de vida negativas para a saúde (SANTOS, 2011).
A grande parcela dos indicadores sociais empregados nos estudos epidemiológicos relaciona-se com a dimensão da renda e os bens dos indivíduos analisados (FERREIRA; LATORRE, 2012). Com base nos dados da PNAD 1998, Noronha e Andrade (2005) estudaram a relação entre o estado de saúde individual e a distribuição de renda no Brasil. Os resultados revelaram que a distribuição de renda afeta o estado de saúde individual de modo inversamente proporcional, ou seja, quanto maior a concentração de renda, menor é a chance do indivíduo referir um melhor estado de saúde.
A análise da desigualdade em saúde deve considerar a distribuição do perfil epidemiológico entre os distintos grupos sociais e as diferenças na distribuição e organização das respostas sociais aos problemas de saúde (VIANA et al., 2001). Nessa direção, a raça/cor da pele deve ser compreendida como variável social que incorpora construções históricas e culturais, um importante fator determinante de iniquidade em saúde entre grupos étnico-raciais (ARAÚJO, 2009).
Os estudos que arvoram discutir o emblemático panorama de assimetrias, a contrastante diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades em todas as esferas e justiça social, devem peremptoriamente evocar a reflexão conceitual sobre a desigualdade social, a equidade, a iniquidade e a vulnerabilidade introduzidas nesse campo para uma maior compreensão de seus determinantes.
Conceitualmente, o termo desigualdade social significa a ocupação de diferentes posições na estrutura social e, por consequência, na variabilidade do privilégio de acesso a bens e serviços com disponibilidade restrita no meio social. Embora usualmente se espere algum nível de desigualdade na distribuição dos recursos sociais, a dimensão da disparidade é que suscita análises mais aprofundadas acerca das causas da diferenciação, o que remete à existência de iniquidade, em contraposição ao princípio da equidade (FARO; PEREIRA, 2011).
As desigualdades são traduzidas nos indicadores demográficos ou epidemiológicos, reveladas nas condições de saúde e acesso ou utilização de recursos assistenciais e podem ser determinadas pela renda, educação e classe social, e resultarem de um sistema de injustiça social (ALMEIDA-FILHO, 2009).
Na área da saúde, o conceito de desigualdade é compreendido como a distribuição desigual dos fatores de exposição dos riscos de adoecer ou morrer e do acesso a bens e serviços de saúde entre distintos grupos populacionais (DUARTE et al., 2002).
A desigualdade social está refletida nas desvantagens materiais e simbólicas sofridas historicamente pela população negra e legitimadas pelo Estado brasileiro. Para Carvalho (2005), as desigualdades tendem a se perpetuar caso o Estado continue adotando os mesmos princípios políticos considerados universalistas na distribuição de recursos e oportunidades, mas que na prática favorecem a poucos segmentos da sociedade e continuam excluindo populações com histórico secular de discriminação.
Inconteste, países com frágeis vínculos de coesão social proveniente das iniquidades de renda, são exatamente os países que pouco investem em capital humano e redes de apoio social, imprescindíveis no que se refere à promoção e proteção da saúde tanto no âmbito individual e quanto coletivo. Curiosamente, os melhores níveis de saúde não se concentram nas sociedades mais ricas, e sim, nas sociedades mais igualitárias e com elevada coesão social (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).
Nessa perspectiva, equidade incorpora em seu conceito algum valor de justiça distributiva, parte do reconhecimento de que os indivíduos são diferentes entre si, portanto, merecem tratamento diferenciado, de modo a garantir mais direitos a quem tiver mais necessidades. Dessa forma, nem toda desigualdade corresponde a iniquidade no sentido de injustiça. A iniquidade, em contrapartida, pode ser considerada como uma desigualdade injusta, potencialmente evitável, redutível (VIANA et al., 2001). A iniquidade, constitui-se das desigualdades inaceitáveis, por seu caráter injusto e desproporcional, reflexo da extrapolação de diferenças biológicas na determinação da saúde, traz à tona as diferenças entre segmentos populacionais na organização da sociedade. Esse panorama sinaliza para a necessidade de investigação dos fatores que potencializam a exposição de um determinado extrato social a condições deletérias à saúde, vulnerabilidade ao adoecimento e chance de morte (ESCOREL, 2001).
No âmbito da saúde, o conceito de vulnerabilidade surgiu no início da década de 1990 num contexto de intersecção de recurso teórico entre vários campos do saber, no qual se levantavam estratégias para o enfrentamento da AIDS. Contudo, o conceito se aplica a muitas outras situações. Sinteticamente, vulnerabilidade pode ser definida como o “conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados ao grau e modo de exposição a uma dada situação e, de modo indissociável, ao maior ou menor acesso a recursos adequados para se proteger das consequências indesejáveis daquela situação” (LOPES, 2005, p.10).
A vulnerabilidade compreende os contextos provocados a partir de condições sociais de violência cotidiana e injustiça estrutural, que motivam uma fragilidade política e institucional concernente à efetiva promoção, proteção ou garantia de direitos de determinados grupos ou indivíduos e pode ser considerada a partir das dimensões: individual, na qual se observam as condições socioculturais que comprometem os sujeitos na promoção de sua saúde; social, que abrange a posição dos sujeitos ou grupos nos processos sociais; e programática, na qual se evidenciam as condições institucionais frente à promoção de políticas públicas e distribuição de recursos (AYRES et al., 2003).
O direito à saúde tem base constitucional e impõe-se como condição imprescindível para o exercício pleno da cidadania e garantia de promoção da igualdade racial, estabelecendo-se como eixo estratégico para o combate e superação do racismo, desenvolvimento e fortalecimento da democracia (BRASIL, 2007). As políticas públicas com perspectiva racial no Brasil são assimiladas como produto da trajetória contemporânea da militância negra, mediada por resistências e lutas disseminadas na esfera pública (LOPÉZ, 2012).
Em que pese os movimentos para a criação de um organismo público e formulação de iniciativas setoriais e específicas, fato é que, nos últimos vinte anos, os avanços no sentido da consolidação de políticas sociais universais têm ampliado o acesso e as oportunidades para a população negra, contudo, o aumento expressivo da cobertura da população pelas políticas sociais não tem representado contribuição significativa para a redução dos índices históricos de desigualdade entre brancos e negros (JACCOUD, 2008).
As desigualdades sociais e a situação de saúde no Brasil são históricas, de elevada magnitude e persistentes. A estrutura social mostra-se excludente e de maior incidência sobre a população negra. Nesse contexto, proporcionar maior visibilidade aos abismos existentes entre as condições de vida das populações segundo a raça-cor da pele e implementar políticas públicas a fim de que os direitos fundamentais do ser humano sejam garantidos representam o melhor direcionamento para uma sociedade menos injusta e efetivamente democrática.
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